Alles gute! (setembro de 2020)

Saíra da aula de alemão às nove horas da noite. O bairro era um pouco deserto a essas horas, então toda precaução era pouco. Guardou o celular no fundo da mochila junto com a máscara de reserva. Apertou o passo e foi de um fôlego só até o ponto de ônibus. Lá encontrou um morador de rua.

O senhor de idade que encontrou no ponto de ônibus lhe pediu um trocado, e Marcus vasculhou os bolsos por algum mas não encontrou. Fez sinal de que não tinha dinheiro para lhe dar, e o sem-teto acenou com resignação. Não havia muitos carros na rua, e com surpresa o rapaz não vira passar nenhum ônibus.

Uma colega de turma se aproximou do ponto de ônibus e Marcus cumprimentou-a com um “Olá!”. A colega devolveu a saudação. Depois caíram em um silencio frio, cada um pensando em chegar em casa e tomar um banho quente. Para quebrar o gelo, Marcus refletiu sobre a aula de hoje: “os verbos são um tanto difíceis.”

A colega assentiu e concluiu: “são as declinações o que me põe perdida.” Marcus concordou com a cabeça. Calaram-se por minutos, talvez uma meia-hora. O morador de rua decidiu puxar a sacola e caminhar para outro lugar. Isso causou um certo alívio aos dois colegas de turma.

“Sabe que não tenho preconceito?” Quebrou o silêncio a mulher. Marcus respondeu, “também não. Mas quando estão drogados, nunca sei o que são capazes de fazer.” Ela assentiu com a cabeça. “E essa praga que está aí?” Acrescentou Marcus. “Nem me diga. Ontem perdi um tio.” Disse ela e silenciaram novamente.

“Onde foi que comprou sua máscara? É bonita e parece confortável.” Disse Marcus. Ela respondeu que foi no bairro X onde mora ao lado do supermercado em uma feirinha de rua que acontece aos sábados de manhã. Ele se espantou: “pois é lá que eu moro. Como é que nunca nos encontramos aqui neste ponto de ônibus?”

Ela explicou que costumava ir para casa de carro de aplicativos, mas que as coisas andam na hora da morte e passaria a tomar um ônibus para casa dali para frente. Ele emendou que sempre andava sem dinheiro, tinha muitas despesas, e que por isso tomava sempre o ônibus.

Mais silêncio e nenhum ônibus passava. Já estavam havia uma hora à espera de um coletivo e nenhum passava por ali. A mulher parecia nervosa. Marcus teve uma ideia: “Por que não chamamos um carro e dividimos a corrida nós dois? Afinal, moramos no mesmo bairro, e ao que parece perto um do outro.”

A colega suspirou com alívio e concordou prontamente. Bastava saber quem chamava o carro de aplicativo, ela ou ele. Como havia escondido no fundo da mochila seu celular Marcus perguntou “por que não o chama você?” Ela concordou: afinal, eram conhecidos um do outro, não havia nenhum problema.

O aplicativo pôs-se a buscar um carro para levá-los. Escolheram o tipo popular e o aplicativo mostrava que havia vários carros na região onde os dois estavam. Logo o celular apontou um motorista para a viagem. Estaria ali em três minutos. Dez reais a corrida, o que pareceu razoável para os dois.

Marcus assumiu seu lado galanteador. Ao chegar o Uber ele abriu a porta para a colega. Depois fechou a porta e entrou na porta do lado oposto ao dela. A noite parecia afeita a galanteios. Sorria de forma mais que amistosa para a mulher. Mas ela parecia engasgada com o alemão, tão afeito a formalidades e distanciamento.

O rapaz resolveu conversar com o motorista do aplicativo, para eliminar qualquer mal-estar com a mulher. Comentou que estava já havia quase uma hora no ponto de ônibus sem sinal nenhum de vida. Comentou que normalmente esperava quinze minutos por um coletivo, mas dessa vez esperou mais que o triplo e nada.

Explicou ao motorista que aquela noite se assemelhava a um dia de feriado. Havia pouca gente na rua, poucos carros, e com a exceção da escola de línguas, o resto estava fechado. Não conseguia conjecturar o porquê de tamanho deserto na cidade. Conforme o carro os levava, ele apontava para a via quase vazia, quase ninguém nas ruas.

O motorista sufocou uma gargalhada, como quem deseja evitar ofender alguém com seu senso de humor. E emendou que alguém na escola de línguas deveria ter nos avisados que naquele dia estávamos atravessando um lockdown. Os ônibus, na garagem. O comércio, incluindo os restaurantes, estavam fechados aquela hora.

Marcus e a mulher se entreolharam: provavelmente não se falou sobre o lockdown por que isso era assunto evidente. Os dois burrinhos não se informaram ou estavam tão preocupados com as declinações do alemão que não se inteiraram da parada da cidade em um dia de semana à noite.

Uma coincidência contribuiu para que os dois nadassem na ignorância aquele dia: ambos chegaram de carona no cursinho de alemão. Se não, teriam esperado o ônibus e saberiam da parada do mundo. Riram a contragosto, por terem de assumir a estupidez em frente ao motorista de aplicativo.

O motorista continuou a viagem, dizendo que era tudo coisa do governador, alguém que pensa muito parcialmente. Conhecia algumas pessoas que passavam fome por não poder trabalhar durante essas paralizações, gente que tinha família para sustentar. Mas o que lhes restava fazer? Quando podia, fazia a doação de alimentos.

O carro encostou em frente à casa dela primeiro e, muito tímida, a colega não ofereceu o rosto para beijinhos. Estendeu a mão e os dois se cumprimentaram. Ele não se ofereceu para pagar a tarifa completa porque este não era o combinado e poderia soar grosseiro. Despediram-se com um até logo e um “Alles gute!” (tudo de bom!).