O centro do mundo (agosto de 2020)

Alguém pode imaginar a perda do centro do próprio corpo em uma manifestação de mal estar? Dá insegurança, vai-se partir ao meio sem nenhum equilíbrio. E eu sozinho nessa casa grande, sem ter a quem pedir para acudir, decerto vou morrer. Nessa manhã de segunda-feira, todos trabalhando, eu se gritar com força ninguém ao lado irá me ouvir.

Desabei no meio da sala,em uma poltrona macia, e dali via tudo girar. Os quadros, livros da estante, abajur, um laptop, papel de carta não utilizado – tudo girando em torno de mim. Tenho vontade de vomitar, por conta de um mal-estar súbito que toma conta do meu corpo sem um centro para me trazer o equilíbrio.

Tento o controle da televisão. Deu certo. Ligou. Na tela, um jogo de charadas. Aproveito para dar um foco no que ocorre na tela. Passo a rodar cada vez menos. Aos poucos fui parando de girar na velocidade de antes. Mas não paro de todo. Dessa vez giro umas duas vezes a cada dez segundos. Caio e tenho que me levantar.

Ensejei ficar de pé, ir até a cozinha para um copo de água gelada, abrir a janela e respirar o ar que vem com o vento do lado de fora. Alguma coisa eu tenho de fazer, porque fechado neste cômodo, sem chances de que alguém possa me ouvir na vizinhança e programar um resgate... eu tinha que fazer alguma coisa eu mesmo.

Dou um salto da poltrona. Mas caio encima da mesinha de madeira de centro. Foi uma pancada que doeu e acho que machuquei a cabeça. Um líquido grosso, de cor vermelha, pinga no chão. É claro que era sangue. Deito de lado e seguro a cabeça para estancar o sangue. Acho que surtiu algum efeito.

Mudo a minha estratégia: ao invés de insistir em levantar para caminhar pela casa, resolvo me arrastar por ela através dos cômodos como uma minhoca. No decorrer de uma meia-hora consego atravessar a sala de tv em direção à sala de visitas. Procuro em todo o canto algum apetrecho que pudesse me servir de muletas, mas foi em vão.

Continuo como minhoca até a cozinha. Lá o chão estava oleoso, e isso me deu asco. Mas não poderia me dar ao luxo de frustrar minha tentativa de chegar a algum lugar que me levasse ao lado de fora de casa, onde pudesse pedir ajuda a algum vizinho. Continuo até a porta da cozinha que dá para o jardim.

Amália havia sumido com a chave da cozinha. Meu esforço de chegar até ali em busca de ajuda foi em vão. Deveria ter deduzido que aquela que era responsável por minha situação vexaminosa havia pensado em tudo para que eu permanecesse preso na minha própria casa quando ela retornasse na hora do jantar.

Penso na porta da frente, aquela que dá acesso à frente. Não valeria a pena empreender todo o esforço que vinha empreendendo para chegar até lá e encontrar a porta trancada e o molho de chaves ausente. A mente diabólica não dispensa elogios. Deseja que nós reconheçamos sua inteligência.

E como cheguei a partilhar minha vida com Amália? Veio em um dia de manhã enviada por uma agência de empregos. De cara nossos corações se casaram. Adorei a figura simples, de sorriso fácil, de muitos talentos. Cozinhava, arrumava a casa, tomava conta de mim que inspirava cuidados nos meus setenta anos de idade. Começou no outro dia.

Logo logo sua presença tomara conta de tudo. Eu já não prestava conta na casa. Tudo parecia limpo e perfumado, pude dar continuidade ao trabalho de escrever minhas memórias no laptop. Depois de oito romances bem-recebidos pela crítica, Finalizava uma fase contando minhas memórias.

Descobri um dia que Amália lia meus últimos escritos e confrontei-a com o que sabia. Ela respondeu-me com um sorriso preocupante e acrescentou que eu era para ela o último grande escritor vivo. Prometeu não transgredir os limites – mas foi aí que comecei a sentir que estava me drogando através da comida e seus deliciosos sucos.

Amália preparava o café da manhã com um grande copo de suco de laranja. Eu não percebi no momento, mas depois de algumas semanas comecei a notar a letargia inexplicável. Nunca me sentira antes assim. A fadiga me impedia a chegar perto do laptop para escrever nem que fosse uma linha.

Um dia, ela me cobrindo de elogios, revelou que iria cuidar de mim para que eu pudesse escrever o livro que eu me havia proposto. Nada de memórias. Proveria a minha casa toda para mim. Saía todos os dias de manhã para fazer o mercado e deixava o almoço. À noite fazia o jantar e dormia no quarto dos fundos para o caso de eu precisar dela.

Mas este dia tudo deveria chegar ao fim. Enquanto não retornava para o jantar, tinha que preparar uma forma de dar um fim a sua loucura. Embaixo da escrivaninha da sala havia uma arma carregada, colocada alí fazia muitos anos. Me arrastei até lá e pude constatar que Amália não a havia encontrado. Muni-me dela.

Eram oito horas da noite quando ela pôs a chave na fechadura da porta da frente. Eu me posicionei do chão com a arma erguida em direção à entrada da porta. Foram três tiros a queima roupa, dois no peito outro na cabeça. O corpo da mulher, corpulenta e de máscara florida cobrindo o rosto caiu para a frente. Eu me senti aliviado.

No dia de hoje tento dar ordem aos acontecimentos daquelas semanas que culminaram no assassinado da estranha figura que, talvez pela incapacidade de ser amada, a seu modo amou demais a mim. Mas que maneira de fazê-lo? Forçando-me a drogar-me durante o dia para trabalhar sob sua apaixonada supervisão durante a noite.

Não fiz questão de ir ao enterro. Dois familiares e um pastor protestante – este presente a pedido da família de Carla, seu nome verdadeiro – estavam lá para o adeus. Ouviram as muitas palavras do sacerdote pedindo perdão por Carla e oraram juntos muitas preces e o Pai-nosso.