Solus Christus

As filas para entrar no supermercado eram maiores que as dos caixas de pagamento, isso decorria do rigor das regras sanitárias. Toda a cidade, fazendo jus ao costume brasileiro de deixar tudo para as últimas horas, decidira comprar os preparativos da Páscoa às vésperas, assim, tudo era lento e tedioso. Alguns, em família, ainda encontravam assunto para prosear enquanto não eram autorizados a selecionar e pagar pelos produtos desejados. Um bom vinho, alguns peixes e especiarias, o almoço de Páscoa prometia. No entanto, essas expectativas acompanhavam poucos, muito poucos.

A grande maioria calculava os centavos de cada produto posto no carro de compras. “Arroz? Reduz a quantidade! Óleo? Tem alternativa?” Cozinhar estava se tornando um curso de economia. Era um paradoxo necessário: reduzir as quantidades e ampliar o prazo de duração, mesmo assim, pagava-se mais caro. Que sufoco! O tempo transcorria e tudo parecia não mudar, já se passara mais de um ano desde o início de tudo, mas tudo era igual. O ano seguia e o mês de abril ingressava sem revestir-se de muitas esperanças. O avanço das medidas de contensão contra o vírus que causara uma das pandemias mais letais carregava consigo a incredulidade e a lassidão. O outono abraçava-os com dias cinzentos e noites frias.

Dentre os muitos que estavam no supermercado, uma família quedava-se defronte. Não estavam na fila, não pareciam querer entrar. Eles estavam ali recostados no muro, mudos. O pai, a mãe lactante segurando seu bebê e mais um filho, de aproximadamente cinco ou seis anos. Suas roupas eram gastas pelas várias lavagens, os calçados de alguns pareciam maiores que seus próprios pés. Não teciam uma palavra sequer uns com os outros. A criança não tinha o espírito de sapeca comum aos infantes de sua idade, não corria de um lado a outro da calçada enquanto seus pais repreendiam visando protegê-lo dos automóveis que transitavam próximo. Cabisbaixo, o menino mirava unicamente uns pequenos carros improvisados com tampinhas de refrigerante que encontrou lançadas ao chão próximo da barraquinha de lanche.

O pai tinha barba por fazer e os olhos caídos e distantes, os ombros retraídos e costas curvadas. Vestia uma camisa clara com dizeres em inglês que não sabia traduzir. Na realidade, pouco conhecia de seu próprio idioma. O número da calça era nitidamente acima do seu, o que lhe gerava a impressão de ser ainda mais magro; ela segurava-se a sua cintura por um cinto já desgastado. Sua vergonha estampava sua face, e o cheiro de melancolia rondava-o. Passou dias em busca de uma nova empreitada na construção civil. Fazia tudo que lhe mandassem, mas não tinha ninguém mais para mandar.

A esposa ainda olhava as pessoas que passavam, mas seu olhar era intimidado. Segurava o bebê em seus braços e o amamentava. Uma menina de poucos meses, que não conseguia sequer perceber a sina que a perseguiria. Ainda não sentia falta das bonecas que não teria, apesar de muito ansiá-las; tão pouco das roupas rodadas que a faria sentir-se uma princesa real.

Sua mãe também não gozara dos privilégios. Vivera no sertão, mas abandonou o lugar onde nasceu quando sua mãe, Dona Maria do finado Bento, tentou, com os cinco filhos de boleia em boleia, chegar a Caruaru. Aos 12 anos, ela cuidava dos irmãos menores para que sua mãe trabalhasse 10 horas por dia na casa de alguns Tabosa. Dona Maria voltava para casa tarde. Analfabeta, não conseguia auxiliar os filhos nas tarefas escolares, mas os incentivava a estudar. Incentivo que fora superado pela necessidade de trabalhar, uma tentativa de transpor as privações. Poucos, afinal, conseguem comer apenas uma alimentação por dia. Do finado Bento restaram poucas lembranças e a sensação de que, caso vivo, não teriam padecido tanto.

Lá estavam os quatro, por longas horas, mas não entravam no mercado. Entre a mãe e o pai havia uma sacola amarela com alguns alimentos doados. Ganharam, depois de muito tempo, alguns alimentos que só dariam para um dia. Todavia, com a aproximação do feriado precisavam garantir que as crianças tivessem o que comer durante toda a Páscoa. Muitos passavam e os miravam; outros, constrangidos por não poderem ajudar, preferiam não olhar. Quando recebiam algo, acenavam com a cabeça. Nem ao menos sabiam esboçar um leve sorriso, mesmo que para agradecer.

Horas já se passara e a sacola quedava-se pela metade, estavam muito desanimados. A criança, até então sentada olhando para os carrinhos de tampinha em sua pista improvisada de papelão, ergueu-se e fitou um jovem senhor que caminhava em direção ao estacionamento. O senhor os vira desde que entrara no mercado, mas privara-se de olhá-los. O menino levantou-se e correu em direção ao homem. “Senhor, senhor! Tome! Caiu quando o senhor entrou”. Era uma foto, uma pequena foto já manchada que caíra de seu bolso e o vento tratou de levar para perto do menino. Ele guardou-a por baixo de sua camisa enquanto esperava o retorno de seu dono.

O homem sem ao menos balbuciar uma única palavra tomou a foto para si, contemplou-a por alguns segundos. Quando o menino dava-lhe de costas para retornar para próximo aos seus pais, ele o chamou. “Ei menino, vem cá!” Retirou do bolso um envelope e entregou à criança. Não disseram mais nada um ao outro, o olhar bastava à compreensão. O homem seguiu, entrou em seu carro, segurou nas mãos aquela foto e chorou recordando a beleza que havia na companhia de sua esposa, sua partida afligia seu coração e eis ali a última recordação.

A criança retornou aos seus pais e entregou-lhes o envelope. Há muito tempo não viam tantas notas juntas. As reações eram de chamar a atenção de todos que estavam ao seu redor, não porque gritaram eufóricos, não fizeram isso, mas por depois de tantas horas eles decidirem integrar a fila de entrada do supermercado.

Já em casa, no domingo de Páscoa, sentados à mesa, quebravam o silêncio comum e faziam suas orações. A mãe com voz suave cantava uma velha de bela canção “porque Ele vive, posso crer no amanhã”, o menino tentava acompanhá-la, mas conseguia apenas dizer os finais das palavras de cada verso. Após a música, o pai, agora de barba feita, rendeu graças e disse ao filho que eles estavam vivendo um milagre, mas não o da mesa farta, ou o das roupas novas, um milagre que há muitos anos já haviam recebido, o maior de todos, o milagre da salvação.