DESMANDOS OU DUREZAS DA LEI?
Pedro Silva é um pequeno proprietário de terras agricultáveis da região centro-oeste do município de Agraciados do Brasil. É fã incondicional e amigo do cidadão esperançopolense José Saul Santos e se considera um dos seus seguidores, sobretudo pelo muito que ele tem feito pelo povo de sua região e pelo exemplo que ele tem dado como homem público nas diversas vezes que esteve à frente de uma gestão política.
Pedro Silva também é um líder comunitário intermunicipal e tem feito parte, ainda que de forma indireta, da Organização Não Governamental GIBI (Grupo dos Indivíduos Bem-Intencionados) na intenção de ajudar as pessoas em geral da região onde ele vive, mormente àquelas que solicitam orientações ou fazem queixas de alguma natureza. Para que possamos ter uma ideia da dimensão dessas necessidades comunitárias, nos últimos tempos, a aparição de problemas sociais de naturezas variadas tem tirado um pouco do seu sono, mas isso faz parte do seu trabalho.
Por causa disso, dias atrás, ele e alguns dos seus descendentes mais próximos e muitas outras pessoas residentes lá em Esperançópolis, ficaram perplexos com o resultado do julgamento judicial de uma causa em que envolveu um grande fazendeiro da região esperançopolense e o colono Domingos, e até agora eles não sabem a razão de tal veredicto ter dado ganho de causa para o grande latifundiário.
Por outro lado, diante de tantas notícias veiculadas através dos meios de comunicação de massa do nosso país, envolvendo pessoas incumbidas de administrar a nossa justiça, esse episódio vem colocar em xeque a inexistência de uma imparcialidade absoluta nos julgamentos judiciais realizados, e daí ele se perguntou:
- Será que estamos vivendo na "Terra de Ninguém?" - Até porque esse não foi o primeiro caso de resultado de sentença duvidoso. Não faz muito tempo, outro sentenciado, desta feita numa causa trabalhista, foi mais uma dessas vítimas das discrepâncias do poder econômico, tendo do lado mais forte um grande empresário e do lado mais fraco, um trabalhador local.
Quanto ao que aconteceu com o colono Domingos é sabido por todos nós daqui da macrorregião esperançopolense que ele teve parte de suas terras burladas por um grande fazendeiro da região, que sem "dar bolas" para o brado popular, vibrava muito com a causa que acabava de ganhar. Entretanto, o que causou o descontentamento da população e do sentenciado Domingos, não foi o resultado da causa em si e sim a atitude prepotente do ganhador daquela causa. Imaginem que ao final da demanda, aquele fazendeiro, muito feliz da vida, mandou publicar um artigo no vespertino local, exibindo uma manchete, em letras garrafais, com o seguinte título em latim: "Dura lex, sed lex", que traduzido para o nosso vernáculo quer dizer que "a lei é dura, mas é a lei”.
Como se tudo isso não bastasse, ainda em um tom acintoso, declarou para o repórter de uma emissora de rádio local que o entrevistou minutos após o juiz ter propalado a sentença, que pouco importava os brados e os protestos populares em favor do seu contendor, e enfatizou, de forma arrogante, que o que estava feito não tinha mais volta, uma vez que tudo fora feito dentro dos mais restritos termos e parâmetros da lei.
Na qualidade de amigo do camponês Dionísio, o agricultor Pedro Silva reconhece que foram as circunstâncias, até certo ponto duvidosas, desse fato que geraram uma grande revolta local, fazendo com que as pessoas da região de Agraciados do Brasil, liderada por Domingos, se mobilizassem e fossem para as ruas e avenidas dos bairros centrais para reivindicar os seus direitos como cidadãos cumpridores dos seus deveres que os são.
Dias atrás, em conversa com o camponês Domingos, a parte vencida no aludido processo de sentença duvidosa, ele desabafou:
- Nos dias em que vivemos sempre tem prevalecido a lei do mais forte. As classes sociais menos privilegiadas, cultural e socioeconomicamente falando, têm encontrado dificuldades para fazer exercer a sua cidadania e os seus direitos diante de conflitos em que os poderosos são arrolados como partes litigantes.
Por outro lado, o seu amigo Dionísio, pessoa mais ponderada nas suas declarações, ao se pronunciar acerca daquela situação não quis fazer nenhum comentário e/ou generalização em que colocasse em xeque a forma de atuar da nossa justiça. Apenas ao se referir àquela ação judicial em que se viu envolvido o seu amigo ele fez questão de usar uma citação de Stanislaw Ponte Preta, saudoso escritor e dramaturgo carioca, o qual disse que "quem toma de pobre debita a Deus", querendo dizer com isso que de nada adiantará o rico procurar levar vantagem sobre os pobres, pois, mais dias, menos dias, ele prestará conta ao Criador e lá, no tribunal divino, o magistrado sempre será imparcial.
Ainda a respeito do assunto "ação judicial", Dionísio comentava que de acordo com alguns levantamentos estatísticos feitos naquela região, os posseiros (pessoas que estão na posse legal de imóvel ou imóveis indivisos), sempre travaram batalhas jurídicas infernais contra alguns latifundiários. Esses senhores feudais, além de não admitirem ceder parte de suas terras improdutivas para quem delas necessitavam mesmo se tratando de uma posse legal, procuravam, de vez em quando, encontrar subterfúgios para subtrair parte das terras dos mais fracos. Entendiam tais latifundiários, que quanto mais terras detivessem maior respeitabilidade e poder político-partidário teriam no seio da sociedade onde estivessem inseridos, pouco importando os meios utilizados para consegui-las.
Na opinião do poeta Ulisses Barroso, mais conhecido pela alcunha de “Boca da Noite”, com a qual Pedro Silva compactua, - "esses grandes detentores de terras costumam constituir bons advogados para atuar nas suas lides, e geralmente são bem-sucedidos em quase todas as ações demandadas, ao passo que o posseiro ou o pequeno agricultor, ou um “João Ninguém" qualquer, tende a ficar a mercê dos advogados dativos”.
Ulisses Barroso entendia que os advogados dativos, por serem nomeados por magistrados e não por lei, na sua maioria, não estavam totalmente comprometidos com a qualidade a ser dispensada no atendimento aos seus clientes, e sim, preocupados com a quantidade de clientes que teriam de atender no decorrer do seu expediente diário, tamanho era o contingente de demandantes e demandados nessa situação.
Os dias se passavam e aquela derrota judicial estava tirando o sono do camponês Domingos, que não admitia, em nenhuma hipótese, ser chamado de “camponês sem eira nem beira”. Por alguns dias ele ficou muito revoltado com aquele resultado desfavorável e atribuiu a sua derrota ao flagrante momento de inércia pelo qual está passando o nosso sistema judiciário.
Segundo ele, nossa justiça é muito morosa e as alternativas judiciais que são postas à disposição da classe menos privilegiada socioeconomicamente falando, são muito insuficientes.
Um dos ditados populares deste país afirma que "Deus nunca tarda; Ele está sempre a caminho" e para justificar essa assertiva o camponês Dionísio, que é um desses evangélicos convictos que está sempre querendo ajudar o seu semelhante não poderia deixar que sentimentos tais como a revolta, o rancor e a ira, tomassem conta do coração de mais uma alma indefesa e num gesto de rara solidariedade e puro amadurecimento espiritual, convidou o seu amigo Domingos para ir assistir a um culto evangélico no IUFISC, Instituto Universal dos Fiéis e Incontestáveis Seguidores de Cristo, do qual era assíduo frequentador.
Aqui, faz-se necessário um esclarecimento acerca do papel social que é desempenhado pelo IUFISC, Instituto Universal dos Fiéis e Incontestáveis Seguidores de Cristo, que, em se tratando de uma instituição social independente e sem fins lucrativos, foi criado com o intuito de atender às necessidades das pessoas que procuram difundir a palavra do Senhor, não importando a linha de pensamento religioso seguida pelo missionário. O espaço físico do estabelecimento em questão tende a ser cedido para aquele pregador que dele necessitar, bastando para tanto que seja agendado com antecedência o dia em que ocorrerá o seu evento.
Naquele dia, especificamente, o camponês Dionísio tinha apenas a intenção de levar uma mensagem de fé para o seu grande amigo Domingos, visando com isso mostrar para ele que as derrotas que sofremos nessa vida terrena motivadas pela lei dos homens, poderão ser superadas através do poder de Deus, mas que nem por isso deveremos deixar de lutar pelos nossos direitos. E ali, numa demonstração do testemunho de sua fé, recorreu aos ensinamentos bíblicos até então apreendidos e proferiu para o seu amigo uma mensagem contida na Epístola de Paulo Apóstolo aos Romanos, justamente aquela que consta do Capítulo. 8, versículo 35, de aludido caderno bíblico, a qual reza textualmente:
"Então quem pode nos separar do amor de Cristo? Serão os sofrimentos, as dificuldades, a perseguição, a fome, a pobreza, o perigo ou a morte?
Domingos ouviu a mensagem e aceitou o convite do seu amigo e protetor espiritual e para lá se dirigiu, mas ao entrar naquele templo sagrado, ficou um pouco surpreso ao ver que todas as pessoas que o visitavam pela primeira vez eram convidadas a assumir um compromisso formal religioso no intuito de se tornarem sócios provisórios daquela congregação.
Entendiam os seus adeptos mais assíduos que essa era a única maneira de manter as pessoas injustiçadas pelos homens aqui na Terra, mais perto da justiça de Deus, formando, assim, uma grande corrente em prol da luta pelo bem.
Assistiram ao culto evangélico e após o seu final Domingos tornou-se sócio provisório da congregação da qual seu amigo fazia parte. Ali, durante as orações, ambos depositaram nas mãos de Deus as suas últimas esperanças, pois atribuíam todo aquele quadro de total desesperança na justiça humana, à obra do destino e, como tal, somente Deus teria a solução definitiva para aplicar o veredicto final daquela e de muitas outras lides não esclarecidas, porém passadas em julgado no plano terreno.
Naquele clima de total descrença nas ações provenientes dos condutores da justiça daquela região Domingos questionou-se:
- Que mundo é este em que estamos vivendo? Onde estamos e para onde iremos? Eu acho que a justiça que possuímos é realmente cega. Ela não consegue ver as injustiças que são cometidas contra os réus ou autores menos favorecidos socioeconomicamente falando. Ou será que nós estamos vivendo numa “Terra de Ninguém”?
Além das causas processuais envolvendo os cidadãos Dionísio e Domingos, todos conheciam outros resultados de lides anteriores e sabiam que, tanto em Esperançópolis, quanto em Agraciados do Brasil, como em qualquer outra parte deste país, o resultado mais comum das sentenças judiciais dos últimos conflitos fundiários contemporâneos, envolvendo colonos e fazendeiros, tinha de certa forma dado ganho de causa à classe mais privilegiada, a dos latifundiários, evidentemente. Raríssimas exceções, ocorriam situações em que o colono, homem do povo, saía vitorioso.
O colono Domingos continuou por muito tempo chateado com aquela situação incômoda em que ele se viu envolvido. Segundo ele, não era interessante naquele momento recorrer da sentença judicial, contudo, manteria latente o seu ideal de continuar lutando pela existência de uma justiça imparcial onde as partes litigantes pudessem confiar um pouco mais nas pessoas encarregadas de fazer valer os seus respectivos direitos.
Numa conversa informal com alguns amigos, quando instado a tecer algum comentário acerca do momento de instabilidade e descrença pelo qual o judiciário pátrio estava travessando, ele assim se expressou;
- Eu entendo que esse é um dos quadros sociais que tem de ser mudado urgentemente, ainda que para isso tenhamos de lutar com todas as “armas legais” e argumentos comunitários existentes que, diga-se de passagem, ainda são pouco usados por esse povo desprotegido, cultural e socioeconomicamente falando.
Os moradores do município de Agraciados do Brasil e macrorregião esperançopolense, a exemplo do camponês Domingos, continuam convictos de que algo de revolucionário em termos de mudanças de caráter moral ainda possa acontecer.
Aquela gente acredita, ainda que de forma meio bisonha, que esse momento de descrédito nas sentenças emanadas de algumas instituições judiciais e por extensão por parte de algumas pessoas que as representam, poderá mudar para melhor qualquer dia desses.
Meio ressabiados, eles são unânimes em afirmar que se essa situação continuar dessa maneira, a venda que protege os olhos da nossa justiça deverá ser arrancada e em seu lugar deverá ser colocado uma enorme lupa, para que ela, destarte, possa enxergar melhor.
Enfatizaram, por fim, que em agindo assim, sem a suspeita da existência de alguma proteção tendenciosa e/ou ardilosa quando da ocorrência dos julgamentos, todos terão a certeza de que o que irá acontecer, doravante, não se tratará de desmandos e/ou parcialidade por parte dos julgadores e que apenas se fará prevalecer as durezas da lei.