Adão e neve

Era um dia friozinho no Paraíso Tudo nos seus lugares, depois do almoço, como só lá no Paraíso ou na Escandinávia. Nada por fazer. Ele andava de cá pra lá, com vontade de nada. Nem de coçar o saco. Uma monotonia geral. Um saco, falando inglês mais claro. Olhou o Jornal dos Sports de anteontem pela vigésima vez. Como via tudo, já sabia até do que não aconteceu. Que os jornais, obviamente, não publicavam. E a Loteria? Mais uma vez, 12 pontos, nunca os 13 da consagração. Como é bom poder perder, pensou. Não há graça nenhuma em ganhar toda semana. Isso ficava mais monótono do que já é.

E a Olaria Celestial? Há muito tempo que não ia lá. A garganta ia anunciando resfriado, atchim, atchim. Que tal continuar aquela brincadeira de fazer bonequinhos de neve? Pensou mesmo que não deixa de ser narcisismo aquele negócio de ficar se copiando, à sua imagem e semelhança. Um bonequinho ali, um aqui, outro lá, acolá... depois ajuntava tudo num só, fazia outro maior. Lembrou-se, de repente, daquele último que tinha abandonado. Era grande que nem ele mesmo. Era o cúmulo do narcisismo, pensou. Mas deixa pra lá esse negócio de complexo de culpa. Isso não é para gente como Ele.

Abriu a porta da Olaria. Friozinho, a conta de complicar esse resfriado. Acendeu a luz. Abriu as janelas, apagou a luz. Crise de energia... até no Paraíso. Ali estava o bichinho. Até que é bonito. Se parece mesmo com Ele, imagem e semelhança. Sem tirar nem por. A cabeça, os ombros, tronco, os membros... Ali no nariz tem um defeitozinho. Tá parecendo de águia, nariz aquilino. Uma ajeitadinha só e fica no.... Ai, acho que vou espirrar .... e fica ... no ponto....

AAAAAAAATCHIIIIIIIIIIIIIIII. Que isso... outro espir... AAAAAAAAAAAATCHIIIIIIIIIIIIIII espirro... Que isso, está se mexendo...um outro espi... AAAAAAAAAAATCHIIIIIIIIIIIIIIIII abriu os olhos, até que é bonito, é um boneco de barro abrindo os olhos.... se levantando... passa as mãos em si mesmo...

AAAAAAAAAAAAAATCHIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMM ...

Trancou-o na Olaria. Não sabia o que fazer com aquela coisa. Quebrar? Desfazer? Não tinha coragem. Podia botá-lo como criado, para amá-lo e servi-lo. Isso sim, dar-lhe vida, assim os religiosos teriam uma boa explicação no futuro, quando alguém quisesse saber o por que daquilo tudo. E já que um estava feito, fez outro, menor do que o primeiro e pequenas diferenças, já que desgraça pouca é bobagem, e foi caçar uma cama, porque a gripe não tava brincadeira.

Antes de cair no sono, pensou que podia começar a ter uma vida mais movimentada. Iria começar proibindo os dois de alguma coisa. Teria, portanto, a quem vigiar, algo com que se preocupar, haveria leis para eles obedecerem. Ele teria a quem punir, que excitante! E mais: haveria também com quem conversar. E, entusiasmado, voltou a sonhar, depois de muito tempo, com uma de suas novas ideias: esparramar mais estrelas pelo Universo. Ia ficar bem mais bonito. De repente, tudo aquilo iria ficar mais divertido também. Júnior e Júnia - nomes provisórios daquelas "coisas" - iriam dar sentido a sua vida.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 09/02/2021
Reeditado em 23/02/2021
Código do texto: T7179943
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