DO DIA QUE MORRI EM VIDA

Acácio Salvador Véras e Silva Júnior*

Dez anos, não sei se é o tempo certo, mas é o que me vem à cabeça, era o tempo que, segundo ouvia de todos, já durava sua luta. Tudo era silêncio naquela noite, o cotidiano que normalmente quebrava o marasmo, naquele momento parecia também calado.

A não ser pelo barulho baixo da televisão ligada... Tudo estava mudo.

Foi a primeira vez em muitos anos que pedi a meu pai, pra dormir no quarto dele. Ele me perguntava por que, e eu não sabia responder. Só argumentava dizendo que não custava nada, já que minha mãe tinha ido fazer companhia a minha avó no hospital.

Armei a rede, ao lado da cama onde meu pai lia o jornal e entreolhava a TV, mas sequer consigo lembrar o que passava. Fiquei lá quietinho! Como se tivesse medo que ele mudasse de idéia e me mandasse voltar para o meu quarto. E se fizesse não seria de todo errado, afinal eu não era mais nenhuma criança já tinha 16 anos.

Deitei naquela rede e um turbilhão de lembranças me veio à cabeça... 16 anos de boas lembranças – foi esse tempo que pude viver ao lado dela, na verdade tempo reduzido também pela distância dos locais onde eu minha família morávamos, quando meus pais davam continuidade a seus estudos. Restavam as férias. E que férias!... Vínhamos sempre, no meio e no fim do ano, pra casa da Vovó.

Lá era sempre divertido – rodeado de primos, a casa cheia - Vovó recebia muitas visitas! Sempre algum tio, irmão ou algum parente mais distante estavam por lá. Não consigo tirar da cabeça aquele tempo... Às vezes sinto o gosto do frango de domingo, do pão doce que ela sempre guardava pra mim... Consigo ouvir as reclamações do Vovô dizendo que a sopa estava salgada ou que estava sem sal... Ouvindo-a dizer que era hora de ir rezar o terço... Sentada ali naquele banco no jardim (jardim que ela tanto cuidava), terminava dizendo que já era hora de ir “pegar a novela”.

O tempo passou e eu cresci e nem tudo era mais como antes, por vezes coloquei a culpa na correria dos estudos, na falta de tempo para ir vê-la... Naqueles anos já via minha pobre avó como velha, conseguia compreender sua frágil saúde... Mas muito pouco fiz para ajudá-la... E até mesmo por vezes duvidei de suas queixas... Talvez, acreditando que, de queixa em queixa e de hospital em hospital, ela viveria anos.

Mas deitado ali, naquele momento, senti que podia estar enganado... Podia ser tarde.

Peguei um livro que havia levado pra despistar o pensamento e comecei realmente a lê-lo, lia por ler, mas não consegui me prender ao sentido. Naquela hora, a leitura não tinha cronologia, não tinha lógica... as letras se misturavam às minhas lembranças.

Apesar de ser ainda cedo, finalmente adormeci.

Despertei minutos depois, assustado com o barulho de um telefone, que meu pai, ainda acordado, prontamente atendeu. Olhei em direção aos dois: meu pai e o telefone, e sem dizer nada percebi que ali terminava a saga da teimosa e lutadora Maria Alzira.

Num gesto de conivência às lágrimas que já escorriam no meu rosto, meu pai fez sim com a cabeça. E ali foi o meu Adeus. A dor me sufocava e a certeza de que aquilo era a única coisa que não voltava atrás se fez naquele momento... pensei na minha mãe e no medo que eu tinha de ela não suportar...

Caí em mim, meio atônito, com a fala do meu pai: - troque de roupa e vamos lá!

Fui ao meu quarto, que tanto tentara evitar naquela noite, vesti minha roupa e fomos ao encontro do Adeus... Em alguns momentos não sabia quem tinha partido, se ela ou eu.

Hoje percebo que ela não foi sozinha, levou consigo minha família e aqueles momentos que agora não passam de lembranças...

Naquele 22 de março de 2001, vovó se foi em paz !

*Comunicólogo e Pós-graduado em Comunicação e Política