"O Menino e os Livros"
O menino entrava nas livrarias como se fosse uma loja de doces. Espiava encantado, com olhos brilhantes, livros de todos os tipos, cores e tamanhos. Folheava-os com fascinação. Conhecia de cor os autores e suas obras. Quem escreveu o quê, quando, qual o país, de que tratava o livro, etc.
Rato de biblioteca. Sonhava em ter seu nome gravado na capa de uma daquelas publicações.
O menino viajou para inúmeros países. Desbravou todos os continentes. Não tinha oceano, rio, mar que não tivesse posto seus pés, ou melhor, seus olhos.
Viajou no tempo e no espaço. Esteve nas duas guerras mundiais, enfrentou pestes, epidemias, terremotos e a fúria do Vesúvio em Pompéia. Conheceu reis, rainhas, imperadores, faraós e assistiu enforcamentos, crucificações e guilhotinados na revolução francesa. A reforma religiosa, o renascimento na Idade Média. Viu a construção das pirâmides de GIzé, da muralha da China e do muro de Berlim . Foi para a Lua. Ele viu extraterrestres e monstros dominando a terra e promovendo guerras e destruição do planeta.
O tempo foi escorregando silencioso na vida do menino. A vida o levara para todo lado. A vida e seus infortúnios. A vida e seus mistérios. O menino carregou seu sonho debaixo do travesseiro, no porão, em um baú empoeirado num canto perdido qualquer.
O menino se arrastou pelas vielas da região da Toscana, com os olhos distantes e embaçados. Quem sabe, estará num cabaré da Lapa, à procura de um sambista que não existe mais, batendo na caixa de fósforos um samba desconexo. Ou, tomando um belini em Veneza, esperando por Ernest, ou Godot. Procurando os impressionistas em Paris, talvez esteja impressionado. Na paulicéia desvairada, perseguiu Macunaíma, para chegar perto do seu Mário.
O menino se arrasta... E arrasta um velho e um cachorro de rua. Desvia os olhos vidrados nos livros da livraria cibernética. Seus olhos cansados arriscam um brilho, entre tantas publicações. Ameaça cair uma lágrima. Já não conhece novos autores nem se lembra direito de mais nada.
Não sabe direito se sua vida foi vivida, se foi sonho, se era uma história do pergaminho do mar morto, ou uma profecia de Nostradamus.
Seus olhos estão voltados para outra realidade, que não contempla seus sonhos. Séculos consumiram sua solidão. Sua alma caminha de um lado para o outro com um crânio nas mãos, debaixo de uma ponte do rio Tietê.
O menino largou tudo. Num canto de um sebo encara, com os olhos esbugalhados, um livro que prega a felicidade ao alcance de todos.
Caminha pelas ruas frias, chuta tampinhas de garrafa e derrama versos pelo chão.