A BOA AÇÃO
Hoje acordei com vontade de desbravar os terrenos baldios e incultos que se estendem dento de mim e torná-los produtivos. Não posso continuar neste chove-não-molha. Fiquei assim desde que perdi o meu emprego.
A Fábrica de Lanifícios, onde trabalhei décadas e décadas, fechou as portas alegando insolvência e declarando falência. Seiscentas pessoas ficaram no desemprego. Famílias inteiras dependiam daquele trabalho. Os patrões eram Alemães, há muito tempo radicados naquela pequena cidade do interior. O problema não foi de modo nenhum falta de encomendas. A fábrica nunca deixou de ter trabalho. Herr Barth fechou a Empresa em Portugal, para abrir na Roménia, em virtude da mão de obra ser muito mais barata.
Fiquei no desemprego. Não tinha apetência nem motivação para fazer o que quer que fosse. Lutei contra demónios e mafarricos. Durante longo tempo, guerreei com as bestas que fizeram poiso dentro de mim, esquartejando-me o coração e lavrando profundos sulcos na alma. Era uma realidade que doía, doía muito. As entranhas gritavam aflitivamente, mas eu parecia surda. Os filhos pediam comida e muitas vezes nem uma côdea de pão tinha. Deixei de cozinhar. Deixei de ir ao supermercado. Desmazelei-me. Parecia que vivia a leste de mim própria, pouco me importando com eles e comigo. Emagreci muito, fiquei escanzelada. A tez era macilenta, o olhar vítreo e a locomoção vagarosa. Toda a postura do meu corpo, refletia cansaço e uma tristeza profunda.
No início, as lágrimas corriam silenciosas, lavando-me o rosto numa apatia assustadora. Eram os sinais da depressão que começavam a emergir. Mais tarde as lágrimas deram lugar á agressividade e aos gritos de raiva e revolta. Era revolta, muita revolta mesmo contra tudo e contra todos. Comecei a ouvir vozes que me manipulavam como se fosse uma marionete. Comecei a ver e a sentir coisas que não existiam. Amiúde via sanguessugas cravadas no meu corpo sugando-me o sangue. O meu comportamento era esquizofrênico. Não queria saber dos outros. Era fria, insensível, como se não tivesse sentimentos. Ás vezes tinha alguns momentos de lucidez e ficava assustada. Eu não era assim. Eu precisava reagir. Valia-me a família maravilhosa que tinha. Eles sabiam que eu não estava bem e precisava de ajuda. Andei em psiquiatras e psicólogos, mas pouco ajudou. A grande ajuda mesmo, foi-me dada por um livro que uma amiga me emprestou. O MONGE QUE VENDEU O SEU FERRARI, de Robin S. Sharma.
Nunca fui cobarde nem preguiçosa, sempre fui uma lutadora. Comecei a trabalhar muito nova. Agora ao fim de tantos anos ficar sem trabalho, não foi fácil. Nunca dei valor a riqueza material e a luxos. Riqueza para mim, está dentro de nós. O dinheiro só é importante, para nos permitir viver com dignidade. De outro modo, gera inveja, luta pelo poder, conflito e guerra. Corri Seca e Meca á procura de outro emprego, mas quando dizia a minha idade, abanavam a cabeça dizendo que não havia nada. Aos 50 anos era muito velha para trabalhar, mas muito nova para arrumar as botas.
Hoje uma ténue luzinha brilhou dentro de mim. Agarrei-a apressadamente, não fosse ela extinguir-se. Arregacei as mangas e agradeci a Deus. Aquele Pai bondoso, que está lá em cima de olhos postos nos meus passos.
Peguei na caneca do café e sorvi um golo grande e á pressa. Estava a escaldar, queimou-me a goela mas lá foi para baixo. Quando chegou ao estômago, ainda ia a arder, mas depois ficou um calorzinho nas entranhas que deu aconchego. Podia ter deitado fora, mas a reação é engolir. O caminho é sempre adiante. Voltar atrás é perda de tempo, porque depois temos que repetir os mesmos passos para a frente. A vida é curta e se voltarmos atrás muitas vezes, perdemos momentos importantes. Nunca saberemos o que perdemos, porque as oportunidades seguem inexoravelmente em frente. Ao retomar-mos o caminho, ainda as podemos vislumbrar ao longe, mas jamais alcançá-las, porque elas não esperam. E um passo maior que a perna, também não convém, senão estatelamo-nos ao comprido e mais oportunidades são perdidas. Elas passam ao nosso lado, olham-nos com comiseração e seguem. Ao inviés de voltarmos atrás e darmos passos atabalhoados que nos farão caír, sigamos o nosso caminho com coragem, determinação e fé. Não deixemos de usar também um pouco de cautela. Ter cautela não é de modo nenhum ter medo ou ser cobarde. É um pouco como dizer, que a capa e a merenda nunca fizeram má companhia.
Atravessamos uma era complicada, onde o mal grassa por todos os lados. Precisamos de todos os sentidos bem despertos.
Todo este arrazoado não é para dizer que somos perfeitos, porque não somos. Temos montes de defeitos e erramos continuamente. Á priori parece que fomos feitos numa linha em série e então o refugo devia ser jogado fora. Mas não, Deus criou tudo muito bem e usou de muita inteligência ao criar-nos. Os defeitos e as imperfeições foram deixados propositadamente, para que nós próprios nos aperfeiçoássemos e nos pudéssemos dar o nosso cunho pessoal. Para que pudéssemos sentir entusiasmo na construção do nosso ser e ao longo das várias etapas pudéssemos olhar a obra e alegrarmo-nos com a sua apresentação.
Hoje já olho para esse dia do despedimento colectivo com outros olhos, com outro espírito. A terrível sensação de perda na altura e todo o sofrimento por que passei, hoje é uma valiosa ferramenta que tenho sempre á mão. Os ventos rugiram forte, eu parecia um junco bailando uma dança satânica. Verguei mas não caí, Deus não deixou. A minha fé salvou-me.
Finalmente saíu fumo branco. Recebi uma convocatória para entrevista de emprego. Meto os pés a caminho e dirijo-me determinada e corajosa ao Centro de Emprego da minha cidade. A porta está aberta, "a sala de espera é pequena não cabe quase ninguém, uma dezena de cadeiras distribuídas como quem espera o barco que vai de saída. Um ar condicionado que sopra ruidosas lufadas num ar já viciado nos odores que por aqui vão passando. Uma máquina avariada, desmaiada na parede, onde se lê “Procure aqui o seu emprego”. O cenário não é animador, mas digo para mim própria: Calma Maria, não te deixes influenciar por aparências. Mentaliza-te que és capaz. Que tens condições para vencer. Tu já sofreste tanto mulher. Acredita que o Diabo não está sempre atrás da porta.
Encosto-me numa coluna a um canto da sala. Olho por alguns instantes o rosto daquelas pessoas. A pele é macerada e o olhar é triste. Estão ali também por necessidade . Se calhar até sofreram mais que eu.Se calhar até precisam mais que eu.
Só conheço a minha realidade e começo a imaginar a história de cada uma daquelas pessoas. Eu sou a última por ordem de chegada. A mulher á minha frente tocou-me particularmente. Tem duas crianças pequenas agarradas á sua saia e um bébé no colo, mamando num peito escorrido e mirrado, onde o leite não deve ser muito. Abeiro-me dela e fico sabendo um pouco mais. Está sem trabalho á três anos. Tem mais dois filhos em casa e o marido vive preso a uma cadeira de rodas.
Bem, chegou a minha vez. A senhora que me atendeu era afável e cordial, não daquelas profissionais que estão ali apenas para despachar serviço, com uma voz monocórdica e impessoal.
Contei-lhe a minha vida e como precisava daquele trabalho. Ela ouviu-me com atenção e contou-me emocionada a história de vida daquela mulher que entrou antes de mim. E disse-me: Maria o lugar é seu. É a pessoa que compareceu com mais competências e também com uma vida difícil. Não imagina, como eu também gostava de poder ajudar aquela senhora.
Fui para casa e pensei no assunto. Aquela pungente história de vida, não me saía da cabeça. Falei com Deus e pedi perdão pelo meu egoísmo. Deus disse-me:
-Maria aquela senhora que estava contigo na entrevista precisa mais desse trabalho do que tu. Quando tu nasceste, eu dei-te alguns dons que tu foste desenvolvendo ao longo da tua vida. Entra dentro de ti e procura o dom que podes usar neste momento.
Assim fiz, encontrei o dom da costura. Sempre fui muito habilidosa de mãos e a criatividade saltava á vista.
Encaminhei-me para o jornal da cidade para pôr um anúncio.
AGULHA E LINHAS. Fazem-se todos os trabalhos de costura, homem mulher e criança. Pregam-se fechos e fazem-se bainhas.
E não tive mãos a medir com tanto trabalho.
Abdiquei do meu lugar no Call Centre em favor da mãe de cinco filhos e com o marido em cadeira de rodas.
Tenho a certeza que vão entrar no novo ano, com um sorriso de esperança e alegria e eu também. Apraz-me poder ajudar os outros, a encontrar o caminho da felicidade.
Direitos de Autor
Maria Dulce Leitão Reis
01/01/16