A VOLUNTÁRIA
Chuviscava, era aquela chuva miudinha que costumamos chamar de molha tolos.
O sol já ia alto, mas brincava ás escondidas com as núvens. Levantei a gola do casaco e apertei o último botão rente ao pescoço. Estava frio e sou um pouco atreita a problemas de garganta.
Bem, este breve prólogo para dizer que me dirigia á Obra de Santa Rita dos Meninos Idosos. Aqui eu encontrei o que procurei toda a vida. E todos os dias escorregava dos olhos uma lágrima de felicidade. A comoção era muita, as lágrimas subiam aos olhos e elas bem tentavam acomodar-se apertadinhas umas contras as outras, mas nem sempre era fácil, ás vezes excediam a lotação e algumas resvalavam borda fora. O amor que dava e recebia comovia-me.
Esta maravilhosa Obra foi criada por meia dúzia de 'mecenas', que conseguiram pôr de pé um sonho, para ajudar os idosos mais necessitados.
Todas estas pessoas foram abandonadas pela família. Tornaram-se um peso, um estorvo, um empecilho. As magras reformas não davam para pagar sequer o lar mais modesto.
Aqui contribuíam com dois terços da reforma e tinham todas as necessidades acauteladas. Um terço ficava para eles. A maior parte nem o utilizava, mas assim não se sentiam nem miseráveis nem excluídos da sorte.
Os voluntários faziam um trabalho excepcional. Éramos uma família. Não uma família de sangue, o sangue aqui não enchia barriga. Eramos sim uma família unida pelos laços do amor, da fraternidade e da solidariedade. Os utentes sentiam-se felizes, alguns até tinham um namorico!
Vou resumir o meu trajecto de vida, para que percebam como cheguei até aqui.
Sempre trabalhei muito. De sol a sol e tantas e tantas vezes muito pra lá do sol posto, a raiar a madrugada.
Graças a Deus que o Santíssimo me apetrechou com alguns dons á nascença. Ele sabia o percurso que eu tinha que percorrer, por isso me facultou as ferramentas necessárias, para o desempenho das várias tarefas. Ao longo da minha vida, fui aperfeiçoando as minhas armas. Foram muitas as etapas que percorri e em todas elas eu usei as ferramentas apropriadas, guardadas no meu ‘arsenal'.
Sempre coloquei a minha família acima de mim. Era a razão do meu viver. Eu sei que me anulei um pouco, se calhar devia ter pensado um poucachinho mais em mim. Mas eu era feliz amando e protegendo os meus. Se eles estivessem felizes eu também estava. É claro que eu sabia que um dia os filhos, levantariam voo, em busca da sua jeira de terra. Eu estava consciente disso. O que eu não sabia é que ia terminar a minha vida sozinha. Quando aconteceu foi difícil. Achei que não ia conseguir sobreviver. Foram muitos anos de vida em comum. Tive que aprender a viver, numa nova realidade.
Até á reforma, tinha o meu trabalho. Só sentia falta duma companhia quando chegava a casa e não tinha ninguém com quem falar. Sentia falta dum abraço, dum beijo, de fazer amor. Sentia falta do cheiro do meu homem, só tive um, só conheço o cheiro dele. Sentia-me tão insignificante, tão inútil, eu que tive uma vida tão cheia.
Quando me reformei, tornei-me voluntária. Ia á Obra de Santa Rita quatro vezes por semana. Hoje vou seis dias. Fico com um dia para mim para tratar dos meus assuntos pessoais. Já não passo sem os meus queridos amigos e no dia que não vou, sentimos a falta uns dos outros. Não falamos do passado. No início eles falaram das suas vidas. De quanto se sacrificaram para criar os filhos e dar-lhes uma boa educação. Quando se tornaram dependentes pela idade e pela doença, eles os filhos, viraram-lhes as costas, deram-lhes um pontapé no cu. Os pais tornaram-se um estorvo.
Pois como podiam eles ir de férias para o Algarve, para o Sul de Espanha, para a Côte d’Azur, para a Serra Nevada (alguns para botar figura , recorriam ao empréstimo bancário Férias), ao cinema ou jantar fora? Enfim, eu não sei que nome dar a isto. Qualquer nome que eu avance fica muito aquém do verdadeiro significado. Não vou dizer que é egoísmo ou ingratidão, é muito mais que isso. Será cagança? Viver á grande com as patas de fora? Filhos que abandonam os pais a uma morte certa, porque não têm condições de se desenvencilhar sozinhos, não merecem o ar que respiram.
Depois de familiarizados com a vida de cada um, conhecendo portanto as suas carências torna-se mais fácil colmatá-las. Combinámos não falar mais do passado. Pelo menos dum passado sofrido, que dói, que fere, que rebenta as entranhas. Falamos do presente, como sendo uma enorme caixa cheia de flores e todos os dias retiramos uma. Aspiramos o seu perfume e contemplamos a sua beleza.
Por cada dia que passa, a flor é mais bonita.
Aqui sou feliz. Tenho a quem amar e tenho quem me ame desinteressadamente. Podemos ser quem somos.
E quando á noite vou para casa, vou com o coração cheio e a alma leve. Ás vezes transborda uma lágrima de felicidade, porque tenho novamente a minha vida cheia!
Maria Dulce Leitão Reis.
30/10/15