Cobra em Chamas

- Você nunca tenta me escutar! – a moça gritou e bateu a porta violentamente.

- Bianca volta aqui! – ouvia-se um grito feminino.

Os seus cabelos louros e longos esvoaçavam enquanto Bianca descia as escadas do prédio velozmente. Ao alcançar o térreo olhou para trás e sem perceber já estava se estatelando no chão. Outra moça caiu sobre ela e as duas iam xingar-se quando se perceberam.

- O que foi Bianca? Está tudo bem? – questionou a moça esbaforida.

- Tudo. Tenho que ir – levantou-se apressadamente e continuou a correr.

- Calma Bianca, o que... – sua pergunta foi interrompida pelo afastamento de sua amiga.

Quando a mulher chegou ao térreo encontrou a menina levantando e atordoada com a situação. A moça recolheu suas sacolas do chão e olhou para a mulher interrogativa.

- O que houve tia Lúcia? A Bianca esbarrou em mim e saiu igual uma louca correndo.

- Discutimos. De novo – entoou a última frase com desgosto.

- É sobre... O curso... – tentou adivinhar.

- Nada disso, Célia. Não se envolva. Vou retornar para casa. Tchau. – Lúcia fora friamente enfática.

Célia se recompôs e seguiu o caminho das escadas.

O sol estava muito forte naquele dia. A tarde em Ipanema beirava os 40º graus e o mar estava agitado. Bianca aproximou-se da água, tirou sua roupa e se jogou no chão. A areia recém molhada recebia de minutos em minutos uma batida de água morna, acalorando suavemente a pele da menina.

- Tentando torrar no sol, burguesinha? – a voz debochada foi identificada sem ao menos Bianca abrir os olhos.

- Me deixa em paz Vivi.

- Ih, sua mãe estressou de novo, né? – insistiu a menina.

- Para variar um pouco. – Bianca levantou-se e olhou a moça com dificuldade pelo sol que batia forte em seu rosto. – A moda praia agora é o nu? – questionou ironicamente.

- Esse biquíni é muito pequeno mesmo, né? To nem ai, eu gosto de mostrar o corpo mesmo.

As meninas riram da piada e jogaram-se no mar para um mergulho. Os corpos dourados das garotas refletiam a luz do sol de forma exuberante. Os rapazes que estavam à beira-mar não desgrudavam os olhos.

- Ah, eu vou a uma festa hoje, quer ir comigo? – Vivi a convidou enquanto saiam da água.

- Aonde?

- Lá no morro. Vai ser um baile estrondoso – Vivi estava animada com a ideia.

- Sei não, Vivi. Minha mãe já pesou hoje, se eu for a um baile já viu...

- Fica em casa até a hora da festa. Te empresto uma roupa e nós vamos. Se quiser até dormir lá, minha mãe não liga.

- Pode ser... Bora? – confirmou sorrindo.

As garotas saíram animadas sem dar importância às cantadas dos rapazes.

Ao anoitecer as duas saíram da casa de Vivi com roupas curtas, porém bem produzidas. De longe se ouvia a batida da música. O baile estava a todo vapor quando elas entraram no local. Foram direto ao balcão e pediram bebidas que foram servidas sem demora. A pista estava lotada, num movimento desmedido Bianca esbarra e sua bebida derrama sob o peitoral desnudo do rapaz que parece não se importar pelo ocorrido.

- Fica de boa mina – ele respondeu às desculpas de Bianca. – Se o preço de me aproximar de uma gata igual a você é ter meu corpo coberto por cachaça e limão eu pago tranquilo – disse sorrindo.

- Qual seu nome? – Bianca questionou sorrindo.

- Todos aqui me chamam de Cobra.

- Legal. Eu sou Bianca.

E mesmo contra os alertas de Vivi, Bianca se aproximou cada vez mais de Cobra. Naquela noite o beijo avassalador que recebera arrematou o coração da menina apaixonada. Sem demorar muito assumiram um namoro. A mãe de Bianca era contra, porém a menina era irredutível quanto aos conselhos recebidos, até mesmo quando suas amigas os davam.

Cobra nunca fora um rapaz confiável, chegava atrasado aos encontros marcados, recebia ligações infinitas de números desconhecidos, tinha modos grosseiros, porém sempre que estava com ela tornava o mundo dela maravilhoso. Bianca sentia-se protegida e amada, mesmo sabendo que Cobra trabalhava no tráfico do morro. Em seus devaneios, os comparava ao clássico ‘A Dama e o Vagabundo’.

Poucos dias antes de completarem o primeiro ano de namoro, o rapaz a convidou para morar com ele, no morro. A garota andava às turras com a mãe e com a cabeça fervendo aceitou o pedido do namorado. Retirou suas coisas de casa quando a mãe não estava; não queria se despedir, deixando apenas um bilhete explicando sua mudança.

- Tem certeza que irá fazer isso, Bianca? – questionou Célia ao vê-la carregar suas coisas.

- Não aguento mais minha mãe, amiga.

- Você só está de cabeça cheia, pensa direito.

- Não há o que pensar. Já me decidi.

Célia suspirou inconformada. Abraçou sua amiga e abriu espaço para que Bianca pudesse descer os degraus. Cobra a estava aguardando lá embaixo. Pegou as malas e colocou no porta-malas do carro, abriu a porta para Bianca entrar e logo seguiram.

Cobra parou o carro num ponto do morro onde os automóveis não passavam, chamou alguns meninos desocupados para ajudarem com as malas, e continuaram o caminho a pé. Ao subir um pouco mais adiante, Bianca foi percebendo o olhar torto que recebia da maioria dos moradores, principalmente das garotas. Bianca sorriu, tinha ciência de que Cobra já havia se enrolado com quase todas as garotas do morro, sempre fora muito disputado por elas e jamais abriu mão de sua liberdade para ficar somente com uma. Bianca era a primeira a tornar-se oficialmente sua, e a inveja de todas as outras era nitidamente percebida.

Em poucos dias Bianca estava totalmente adaptada a sua nova realidade. Dona de casa, companheira de um traficante e odiada por quase todos os seus vizinhos. Cobra chegava sempre tarde e se banhava, comia algo e logo saía novamente. Recebia de vez em quando a visita de Vivi para conversarem e espairecer um pouco. Pouco a pouco sua rotina foi se tornando monótona e pesarosa, seus sonhos foram perdendo a cor e sua realidade revelava-se cada vez mais cinza e insuportável.

- Cobra, eu estava pensando em ir à praia hoje – disse animada.

- Vai sozinha? – questionou o rapaz.

- Não sei. Acho que vou convidar Vivi...

- Não quero que saia com essa menina mais – a interrompeu bruscamente. – Ah, e não quero que ela venha mais aqui. Não vou com a cara dela.

- Ela é minha única amiga. – rebateu Bianca.

- Então arrume outras amigas. As meninas daqui de cima são todas confiáveis.

- Quem? – questionou Bianca ironicamente. – Todas as suas ex-peguetes?

- Cala a boca Bianca – gritou. A menina se surpreendeu e estremeceu.

- Cobra... – disse mansamente.

- Cobra o cacete. Já dei as ordens e, quer saber? Porra nenhuma de praia hoje. Vai ficar aqui.

- Eu não vou ficar como uma prisioneira...

A fala de Bianca fora interrompida pelo tapa que Cobra a acertou no rosto. Bianca tropeçou com o impacto e segurou na mesa para não cair. Sua mão subitamente fora colocada no local ardente, seus olhos surpresos expunham medo e suas lágrimas caíram lentamente.

Cobra seguiu para o banheiro. Bianca ouviu o barulho do chuveiro ligado e somente então desmobilizou seu corpo e andou até a pia. Encheu um copo com água e bebeu ofegante. Respirou fundo e molhou o rosto, pegou qualquer pano próximo e passou no rosto recompondo-se. Cobra saiu do banheiro indo de encontro ao quarto; minutos depois saiu arrumado e perfumado. Passou por Bianca sorrindo e fez como se ela não estivesse no local. Fechou a porta e a trancou.

Após aquele dia o relacionamento jamais foi igual. Bianca passou a temer o temperamento de Cobra, não prolongava desentendimentos e sempre cedia às suas ordens. Porém, o vagabundo já estava cansado da dama e não fazia questão de esconder seus desejos.

Em uma tarde, ao se aproximar de casa Cobra fora parado por uma garota que se engraçou por ele. O rapaz não ponderou em cair nos gracejos da moça e após beijá-la marcou de encontrá-la no baile daquele dia. Não percebeu que Bianca estava na janela e viu toda a cena.

Cobra entrou e Bianca continuou na janela. Seu rosto totalmente sem expressão. O rapaz passou por ela, deu um tapa em sua bunda e saiu gargalhando para o banheiro. Bianca suspirou fundo e saiu de casa. Encontrou a garota ainda próxima a sua casa falando no celular. A garota ao notá-la sorriu faceiramente e arregalou os olhos ao notar o punho de Bianca próximo ao seu rosto.

Descontroladamente Bianca descontou todo o seu ódio naquela garota. Com muita agilidade derrubou a moça no chão e subiu em cima, batendo furiosamente e sem medir sua força. Despertou de sua insanidade ao ouvir o grito de Cobra em sua porta. O rapaz correu até elas e empurrou Bianca para o lado, que bateu as costas na parede.

Bianca colocou as mãos à boca surpreendia com o que estava a sua frente. A moça caída no chão com os olhos, nariz e boca sangrando. Com fios de cabelo grudados nos rastros de sangue que saía dos cortes na cabeça. O nariz torto, visivelmente quebrado dificultando a respiração da moça que se contorcia de dor.

Cobra friamente torceu o nariz da garota colocando-o no lugar e vibrou com o grito de dor estagnado pelo desmaio da menina. Ele olhou furiosamente para Bianca que correu para casa. Cobra pegou a menina no colo e desceu o morro, entregou-a a outro rapaz socorrê-la e voltou para casa.

Bianca estava encolhida na cama, com os braços envoltos nas pernas e chorando. Cobra entrou na casa com estrondo. Foi direto ao quarto.

- Está louca? – questionou aos berros. Mas sem dar chances de resposta. Suas mãos já estavam agredindo Bianca com fúria.

Os raios de sol estavam escassos, pouca luz entrava pela janela e Bianca esforçava-se para levantar da cama. O corpo todo dolorido, o rosto com marcas da surra, olho roxo, com a testa sangrando, boca inchada e marcas roxas espalhadas pelos braços e pernas. Com muito esforço a garota levantou, foi ao banheiro e suspirava com o arder do corpo em contato com a água quente.

Colocou uma calça e uma blusa de frio. Pegou um galão e desceu o morro. Foi ao frentista do posto e pediu para encher o galão de álcool.

- A senhora está bem? – questionou o frentista ao notar as marcas.

- Ah, isso? – disfarço Bianca apontando para o rosto. – Não foi nada. Escorreguei em casa e uma panela caiu em meu rosto.

O rapaz fingiu acreditar. Encheu o galão e passou o preço. Bianca trêmula pegou o galão cheio e pagou desconfortavelmente. Saiu ainda mancando de dor e subiu o morro novamente. Colocou o galão embaixo da pia e preparou algo para comer.

Cobra chegou tarde da noite. Acostumado com o silêncio, pois sempre ao chegar Bianca já dormia; bêbado chamou por ela, sem obter resposta. Parou na porta do quarto e a mirou dormir. Tirou sua roupa e deitou somente de cueca ao lado de Bianca que suspirou ao sentir o cheiro forte de bebida.

- Cadela. Você é uma cadela! – Cobra falava desnorteado pela bebida. – Deixou a outra em coma. Cadela! – tossiu e virou para o lado.

Bianca ao escutar o ronco pesado de Cobra levantou lentamente. Foi à cozinha e ao voltar estava com o galão de álcool nas mãos. Despejou o álcool pelo quarto e molhou a cama no local de onde levantara. Pegou uma mochila que estava escondida atrás de um móvel colocando-a nas costas. Olhou para Cobra deitado e tirou do bolso um isqueiro.

- Deixei a outra em coma e deixarei o Cobra em chamas.

Bianca acendeu o isqueiro e o brilho da chama a encantou. A garota sorriu para o fogo e lançou o isqueiro bem próximo ao rapaz que dormia profundamente. Saiu da casa e correu morro a baixo.

Após muito viajar sem rumo, Bianca parou numa encruzilhada e sentou. Uma mulher extravagante, cheia de bijuterias, calça justa e seguida por outras mulheres do mesmo estilo parou, olhou-a descansar e a chamou.

- Está perdida, minha filha?

- Depende – respondeu Bianca. – Quem é você?

- Sou Madame Yolanda, do bordel da região – respondeu orgulhosa. Enquanto as outras mulheres riam graciosamente.

- Perdida não, mas disponível – tornou Bianca.

- Hum, gostei – Yolanda a olhou e gargalhou. – Sabe que nossa rotina é num covil de cobras, não é?

Bianca sorriu faceiramente e encarou Yolanda e sorrindo lhe retrucou:

- Sei muito bem como tratar uma cobra.

***

Conto possibilitado pelo desafio dos amigos Cristian Canto e Leandro Severo II.

***

Jamais admita a violência. Se for ou conhece alguém que seja, denuncie! Violência doméstica é crime.

Batista Andrade
Enviado por Batista Andrade em 21/07/2020
Código do texto: T7012644
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.