Adunco

A casa estava vazia. Não se via ninguém no hall de entrada, ninguém na sala e nem mesmo a cozinha era habitada. O deque dos fundos estava vitorioso neste dia. Uma estrutura de madeira firme, mediana em largura e cumprimento. Existia ali uma cadeira, mais especificamente uma cadeira de balanço; em cima dela um senhor estava silencioso. De longe, apenas os seus cabelos brancos eram visíveis; de perto, seu rosto carrancudo e enrugado, olhos cor de mel brilhantes, nariz adunco e boca fina. Mirava seriamente o horizonte.

Uma senhora gorducha e corcunda se aproximou e tocou o ombro do senhor sentado, ele a olhou e suspirou. Sua esposa sempre vinha buscar-lhe no horário do banho; pontualmente. O senhor se levantou com dificuldade e caminhou lentamente, tal qual sua senhora, que com dificuldade o auxiliava a tirar as roupas e adentrar a banheira que já estava cheia de água morna.

Após o banho, o senhor retornou a sua cadeira de balanço. Sua senhora sentou-se numa poltrona que havia próxima e deleitou-se lendo uma revista. De tempo em tempo o senhor a mirava e expressava tédio e irritabilidade por sua esposa deleitar-se com algo tão inútil, segundo sua opinião. Ele fechou os olhos e começou a sorrir; lembrava-se de sua mocidade, quando eram livres para se amar, podiam correr na praia, tomar sorvete na praça, andar de bicicleta no parque e tantas outras coisas.

Sua vida mudara tragicamente quando a guerra atravessou seu caminho. De família com poucas posses, estavam iniciando a loja de jóias. Viu sua casa ser revirada pelos soldados, alguns móveis quebrados e, junto com sua família, foi levado para o campo de concentração. Foram acumulados em um cubículo junto com outros presos. Tiveram trabalhos direcionados para cada um. E sua trajetória ganhou um novo sentimento; dor. Com seus braços musculosos e a boa forma física, o capitão o recrutou para unir-se ao exército e lutar a favor da pátria. De prontidão recusou, porém após alguns castigos mudou de ideia e juntou-se ao exército.

Foi transferido para o alojamento, onde teria uma cama, uniformes limpos, todas as refeições e um salário. Por um único momento impensado sentiu-se feliz e prestigiado, mas não durou muito tempo, pois a insanidade de ser um judeu e soldado da nação contra os seus o fez repensar muito se continuaria naquele serviço, media suas possibilidades; voltar a ser um preso e junto com sua família ser dizimado ou continuar no exército e salvar a si e sua família pelos serviços prestados.

Suas lágrimas no rosto velho começaram a descer ao lembrar-se do dia que viu três soldados colocar sua família em uma câmara de gás, seu choro estancado estava transbordando em seu coração, seu corpo tremia de raiva e sua aparência demonstrava ódio. Os gritos que ele ouvia eram como cacos de vidro que ferem seu corpo, rasgam-lhe a alma e transforma-o.

Naquela mesma noite o ódio o transtornou. Aproximou-se de um dos soldados e cravou um punhal no coração enquanto, com a outra mão, tapava-lhe a boca para manter o silêncio no dormitório. Logo após, foi à cama do outro soldado e repetiu seus atos. O último soldado ferido teve o corpo flagelado, após matar-lhe com o punhal, escreveu uma palavra em sua barriga. Saiu do alojamento e foi de encontro aos fundos do campo, cavou o chão até conseguir atravessar a cerca e correu mata adentro.

O senhor abriu os olhos marejados e olhou para sua senhora que dormia tranquilamente na poltrona, com o braço caído ainda segurando a revista. Uma lágrima rolou de seus olhos e o fez suspirar.

- Ah, minha amada. Eterna amada. – disse com a voz rouca e fraca.

Permitiu que suas lágrimas caíssem silenciosas e perdera-se em suas lembranças novamente; recordou-se da maneira que a encontrou aquela noite, ele bateu freneticamente a porta até que o homem da casa a abriu assustado; estranhou vê-lo com o uniforme dos guardas e titubeou quando ele lhe contou toda a história. Aos prantos pediu permissão para por seu plano em prática. O homem olhou para sua mulher, que chorando balançou a cabeça afirmativamente.

Quando ele entrou no quarto de sua amada ela dormia tranquilamente. Sua respiração estava calma e controlada. Ele sentou-se na cama e lhe acariciou os sedosos cabelos, passou os dedos no rosto dela, acordando-a. Ela assustou-se, mas o abraçou fortemente ao conseguir identificá-lo. Logo estava arrumando uma pequena mala e despediu-se de seus pais. Quedaram-se durante todo o fim da noite no porto, aguardando o navio.

Ao amanhecer, os soldados assustaram-se e começaram um alvoroço dentro do dormitório, chamando a atenção do capitão que adentrou o dormitório irado com os soldados e notou a aglomeração em torno de uma das camas, aproximou empurrando a todos e ao ver o soldado morto enfureceu-se em ler em sua barriga: adunco. Tão logo ordenou que o caçassem, passou a ordem por rádio para o plantão e ordenou que espalhassem a notícia.

Os jovens conseguiram embarcar no navio e foram diretamente ao departamento dos coletes salva-vidas da primeira classe; esconderam-se por debaixo de umas lonas e quedaram-se em silêncio. O navio, por ordem do exército, fora revistado. Os guardas procuraram em todos os locais, inclusive na caldeira. Entraram no departamento dos coletes salva-vidas e foram de um lado a outro, e ao aproximar-se das lonas receberam um chamado. Um suspeito fora pego, os guardas saíram correndo atrás e ao confirmarem que não se tratava do mesmo homem deram a busca naquele navio por cancelada.

O senhor levantou-se com dificuldade, tirou a revista da mão de sua senhora e a cobriu com uma manta. Sentou-se novamente em sua cadeira de balanço e sua expressão voltou a ficar séria. Respirou fundo e sorriu ao sentir o ar fresco em sua epiderme. Fechou os olhos e sua cadeira continuou a balançar.

Agradeço imensamente ao meu amigo Leandro Severo II pelo desafio das três palavras, sendo elas: Vidro, Cadeira e Epiderme.

Batista Andrade e Leandro Severo II
Enviado por Batista Andrade em 30/03/2020
Código do texto: T6901593
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