Amor Cativo

Oceano Atlântico, 1625. Navio Transatlântico.

O oceano estava calmo, sem grandes solavancos o navio seguia tranquilo para o seu destino: Estado do Brasil.

Os homens caminhavam para todos os sentidos dentro do navio. O comandante estava muito sério, atentava-se ao estado do mar e das conclusões meteorológicas. Sua obrigação era chegar ao porto em perfeitas condições.

- Getúlio! – gritou o comandante.

- Capitão? – questionou o rapaz que chegou afoito.

- É hora do almoço. – informou.

- Sim, capitão! – disse o rapaz e saiu apressado.

Getúlio chegou à cozinha e tocou o sino. Logo o cozinheiro apareceu e questionou o que ele queria.

- É hora do almoço. – informou e apontou com o dedo para baixo.

O cozinheiro apenas balançou a cabeça afirmativamente e fechou a porta da cozinha. Getúlio sentou-se em um assento que havia por ali próximo. Aguardou. Impacientemente. A porta se abriu e o cozinheiro, barrigudo e careca, apareceu com o carrinho abarrotado de pequenas marmitas. Acumuladas sem nenhum tipo de cautela.

Getúlio se apossou do carrinho e rumou ao porão do navio, desceu a rampa de acesso com dois guardas armados de apoio. Com sua chave abriu a grade e colocou o carrinho para dentro. Quando penetrou o ambiente, escuro e pútrido, espirrou.

- Bando de porcarias! Nojentos.

O porão estava lotado de negros; homens, mulheres, idosos e crianças; todos retirados de sua terra natal, traficados para servirem de escravos no Estado do Brasil, nas plantações de açúcar dos senhores de engenho. Getúlio ia entregando, de qualquer jeito, uma marmita a cada um. Chegou ao fim do porão e ainda tinha dois homens sentados aguardando o almoço, porém as marmitas acabaram.

- Se virem, comam com os outros. – disse Getúlio com desdém e saiu carregando o carrinho, os guardas o seguindo, para fora do porão.

Os homens se entreolharam e suas feições ganharam expressões de ódio.

Naquela mesma noite, no horário do jantar, Getúlio desceu com as marmitas; os homens que ficaram sem marmita durante o almoço o seguraram e atacaram o braço direito do rapaz. O morderam em toda a extensão do membro superior. Os guardas se aproximaram e acertaram chutes nos homens, que não aguentaram e soltaram Getúlio. Como castigo, todos ficaram sem janta.

Getúlio fora levado ao epicentro do barco, onde ficava o consultório médico; sem muita especialização e nem instrumentos o médico informou que teria que amputar. Pois o membro ficara muito danificado e ele estava sujeito a infecções. O sorriso de todos os que habitavam o porão fora grande quando ouviram os gritos de Getúlio ecoando todo o oceano ao ser amputado.

***

Porto de Salvador, 12h00min.

Após os 40 dias de viagem, os negros traficados de Luanda desembarcaram no Porto de Salvador. Foram retirados do barco amarrados por corrente e levados ao mercado. Os senhores de engenho iam ao mercado atrás dos negros mais saudáveis, mais fortes e resistentes.

O homem, branco, alto, de bigode pequeno e bengala (com o punho talhado em ouro). O mercado parou por um segundo, o mercador correu até o homem esbaforidamente.

- Senhor Malta, que prazer vê-lo.

- Obrigado, Cícero. Tem novidades? – questionou diretamente.

- Ah, sim senhor! – respondeu desajeitadamente. – O navio chegou agorinha mesmo. Venha vê-los.

E Cícero se fez acompanhar por Senhor Malta, o Senhor de Engenho mais rico da região; suas terras eram infindáveis, alastravam-se por diversas regiões geográficas. Os corajosos o acusava de posses indevidas ou roubos de terras. Porém, Abílio Malta jamais cedeu às acusações e sempre comprovou, entre os seus conchaves, que era possuidor das terras.

Ao adentrar a sala onde os negros estavam os olhos de Abílio se arregalaram. Notou uma pequena escrava, de estatura mediana, com os cabelos bagunçados, porém com corpo escultural, muito bem desenvolvido e, pela escassez de roupas, muitas partes do corpo estava à mostra. O negro ao lado da escrava percebeu o interesse de Abílio e aproximou-se mais da garota.

Abílio Malta caminhou entre os negros, Cícero lhes abria a boca para que tivessem seus dentes verificados, remexia no nariz e nas orelhas, para os negros serem avaliados por Abílio. Ao chegarem a tal garota, Abílio se prontificou em avaliá-la por si só. Seu toque era cuidadoso, porém firme. Verificou seus dentes, nariz, e orelhas. Apalpou os músculos da moça, e após passou a mão por sua barriga.

- É boa parideira? – questionou friamente.

- Não sei sinhô. Nunca fiquei prenha. – sua voz demonstrava medo.

- Posso garantir que a família é de ótimas parideiras senhor. – interveio Cícero.

- Muito bom. Fico com ela, com esse negro. – apontando para o rapaz que estava ao lado dela. – E com os três primeiros negros.

Abílio Malta virou-se e caminhou para o escritório de Cícero com ele, enquanto os homens preparavam seus novos escravos. Abílio assinou a compra e pegou os papéis de registro dos cinco. Saiu imponente e adentrou sua charrete, aguardou sorrindo os homens ‘acomodarem’ os negros na charrete e ordenou a partida.

***

Fazenda Malta, 14h00min.

A fazenda era enorme, a Casa Grande era monumental. Com muitas janelas, indicando ter diversos cômodos. A entrada principal ficava logo ao fim da escadaria. Na porta estava Rute, mulher de Abílio, branca como a neve, honrada, abastada e frígida. Durante os longos anos de casamento jamais fora capaz de dar à luz uma criança. Abílio dizia que a mulher era oca e podre por dentro, para Rute ele era incapaz.

Ao descer da charrete, ordenou que os escravos fossem levados para a senzala e que José lhes ensinasse os afazeres. Quando o capataz ia saindo com os escravos fora interrompido por Abílio.

- A moça fica, será mucama. – informou com veemência.

O capataz retirou as correntes da moça e a entregou ao seu senhor. Que carregou a moça, assustada, para dentro de casa. Ao fim da escadaria, Abílio aproximou-se de Rute e informou que ela teria uma nova mucama. Haja vista, a outra morrera naquela noite. Rute a olhou para a moça de cima abaixo, mirou Abílio e olhou para o lado.

- Tanto faz! – sibilou. – Qualquer negra serve. Já que nem sempre servirá somente a mim.

- Cala-te Rute. – impôs Abílio.

Rute virou as costas e entrou.

- Pode ir com sua sinhá... – ficou pensativo. – Qual é o seu nome, negra?

- Abá, sinhô. – respondeu timidamente.

- A partir de hoje é Maria. – informou. – Agora pode ir com sua sinhá.

- Sim, sinhô.

Abá correu para alcançar sua senhora. Rute demonstrava total desprezo por sua mucama, porém lhe mostrou todo o serviço que iria desempenhar nos quartos e na cozinha. Depois informou que todo domingo ela deveria estar pronta às 15h00min para o passeio no bosque seguido pela missa.

Abílio seguiu para a senzala.

- Você, negro. – apontou para o rapaz que estava ao lado de Abá. – Venha aqui.

O rapaz se aproximou e Abílio lhe questionou o nome.

- Ajagunã, sinhô.

- Pois agora é Julio. Notei no mercado que é o mais forte. Venha comigo, será ajudante do Carlos.

O rapaz não respondeu, somente seguiu seu senhor. Chegaram próximo do capataz e o Abílio o chamou informando que Julio seria seu ajudante e que deveria lhe ensinar tudo. Que ele queria Julio como guarda noturno. O capataz não gostou, porém não teve escolha.

Naquela noite, Abá preparava-se para dormir, num quarto minúsculo ao fim do corredor. Quando Abílio entrou sem preocupar-se em bater ou com qualquer outro gesto de etiqueta.

- Deite e se abra. – ordenou Abílio.

- Sinhô, por favor. Eu nunca...

- Deite e se abra Maria. – disse aumentando a voz.

A escrava não teve opções. Obedeceu ao seu sinhô, deitou-se tremendo de medo, puxou a roupa para cima e distanciou suas pernas. Abílio abriu sua calça e ao ver seu membro, a escrava fechou os olhos e virou a cabeça para o lado. O homem a possuiu com brutalidade, a cada estocada Abá sentia-se humilhada e invadida, seu choro era tímido, não queria irritar seu sinhô. Por fim, o homem saiu de cima de sua escrava, fechou sua calça e saiu do quarto.

Aquele episódio fora repetido quase todos os dias. No início Abá se torturava, pedia para que ele não o fizesse, mas se submetia quando as agressões começavam. Ao passar dos dias, parou de pedir, simplesmente permitia, para não apanhar.

Meses após, Ajagunã era o melhor escravo da fazenda, forte e resistente. Odiava ser chamado de Julio, todos os escravos, em particular, utilizavam seus verdadeiros nomes para se tratarem, porém, às vistas dos senhores tinham obrigação de se tratar pelos nomes escolhidos por seus donos. Ajagunã era carrancudo, só sorria durante os poucos momentos que via Abá na cozinha ou na fazenda cumprindo ordens.

- Eu quero ficar ao seu lado para sempre, Abá. – dizia o rapaz.

- Pare com isso Ajagunã. Se o sinhô descobre isso.

- Eu mato ele se atrever a fizer alguma coisa com tu Abá.

- Não diga bobagens homem. Seria morto na mesma horinha. – ralhou com ele.

- Por essa flor. – Ajagunã retirou uma flor de trás das costas. – Eu seria capaz de qualquer coisa, inté morrer.

Abá aproximou-se de Ajagunã e o beijou nos lábios. Rapidamente, pois temia serem pegos. Ralhou para ele sair da cozinha e deixá-la trabalhar.

O romance dos dois fora se intensificando e em um dia descuidado, Abílio notou os dois se beijando por detrás de uma árvore. Seus olhos faiscaram ciúmes e o homem retornou para dentro de sua casa aos passos firmes. Naquela noite, Abá não fora visitada por Abílio.

Passado uns dias, Abá reclamou a sua sinhá que sentia náuseas, cansaço e notou aumentar seu sono também.

- Sente seus peitos maiores ou inchados? – questionou sem importar-se.

- Sinto inchados, sinhá. – respondeu tímida.

- Está com vômitos frequentes?

- Não é todo dia, mas vomito sim. – Abá baixou a cabeça.

- Está prenha! – informou Rute. – Basta saber de quem não é. Do senhor ou do escravo?

- Basta Rute! – ordenou Abílio entrando no cômodo. – Vá Maria para a cozinha.

Rute revirou os olhos e saiu de perto. Abá obedeceu a seu sinhô e saiu. Abílio aproximou-se de Rute e questionou se ela tinha certeza sobre a gravidez de Maria. E a mulher disse que não tinha dúvidas, os sintomas eram alarmantes.

- Pois se prepare, hoje terá tronco. – informou Abílio e saiu do cômodo sem dar chances de ser respondido.

Abílio chamou o capataz e ordenou que preparasse o tronco.

Os escravos estavam organizados na senzala. Um caolho dizia que seu contato no quilombo tinha respondido a seu chamado, assim os escravos estavam preparando uma fuga. Surpreenderam-se quando o capataz entrou ao lado de Ajagunã e disse que era para todos saírem. Foram conduzidos para o tronco, os negros ficaram alarmados, não sabiam quem iria para o tronco. O capataz preparou o chicote e após a chegada de Abílio e Rute, o capataz entrou e trouxe Abá amarrada. Ajapunã arregalou os olhos em preocupação.

Abá fora presa no tronco e o açoite iniciou, os gritos de Abá eram agonizantes. Não entendia o porquê estava ali. Ajagunã ficou irado e quis tirar Abá do tronco. Carlos, o capataz, o interceptou e amarrou suas mãos. Abílio açoitava Abá com fúria. Notou o sangue escorrer por entre as suas pernas e sentiu-se satisfeito. Abá desmaiou. As outras escravas correram para segurar Abá quando Carlos a soltou. Abá fora levada para a senzala e lá fora cuidada por todos. Pode assim, estar mais próxima de seu amado Ajagunã.

Abílio com o passa dos dias começou a sentir falta de sua mucama, fora até a senzala e ordenou que Abá retornasse para os seus afazeres e ao seu quarto, dentro da casa grande. O temor invadiu a escrava, porém não tinha escolha. Naquela tarde Ajagunã foi visitar sua amada na cozinha, combinou de fugir naquela mesma noite. Iriam para o quilombo, pois já estava tudo acertado. Abá lhe disse que iria encontrá-lo nos fundos da casa grande quando pudesse. Ajagunã lhe assegurou que não iria ser arriscado, pois somente ele estaria de guarda noturno naquela noite.

Abá estava se preparando para dormir, quando sua porta fora aberta abruptamente.

- Sinhô, eu ainda sinto muita dor.

O tapa lhe fez ceder. Abá deitou-se na cama e logo o homem fora para cima dela. A dor nas costas lhe incomodava, suas dores estavam aumentando quando seus olhos se abriram, sabia que era aquele momento. A escrava colocou a mão direita por debaixo do travesseiro e retirou uma faca grande penetrando nas costas de Abílio.

- Vaca! – urrou Abílio.

Abá lhe acertou um chute nos ombros e Abílio desequilibrou e caiu ao chão. Abá subiu em cima do homem.

- Me fizeste perder meu filho. Agora pagará na mesma moeda.

Abá passou a faca no pescoço de Abílio, o sangue começou a jorrar e o corpo tremer. Abá saiu de cima do corpo de Abílio e enfiou-lhe a faca no peito. O corpo parou de se debater no mesmo instante.

A escrava se aproximou do corpo e lhe chutou o rosto. Trocou a roupa e saiu do quarto. Encontrou com seu amado e aos beijos fugiram com destino ao quilombo.

Significado dos Nomes Africanos:

Abá: Esperança.

Ajagunã: Guerreiro Forte.

Obrigado Juliana Montenegro pelo desafio das três palavras Epicentro / Escadaria / Neve.

Batista Andrade e Juliana Montenegro
Enviado por Batista Andrade em 20/02/2020
Código do texto: T6870450
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