Desencontros

A mesa deveria ser um bom lugar para encontros. Pois é, deveria, mas nesse dia não foi. Aliás, naquela casa a mesa nunca tivera essa função.

Era um dia especial, era o aniversário da nossa mãe. As mães, às vezes, conseguem algumas façanhas; dentre elas, até juntar uma família em volta de uma mesa.

Ouvi dizer que antes da televisão as pessoas se reuniam para conversar, acho que é mentira. Conversar não é fácil, pois é ouvir e depois falar. Pessoas não ouvem, e falam coisas desencontradas, emitem charadas indecifráveis.

Continuo pensando que a televisão é uma desculpa. Já estamos no ano de 1972. O mundo está bem moderno, deveríamos evoluir também.

Naquela noite ele entrou em casa, abraçou mamãe e desejou que ela fosse feliz. Apesar de tudo, ele ainda guardava em si bons sentimentos, acho que é boa índole que se fala.

Mamãe havia feito carne cozida, arroz e um feijão novo. O cheiro da comida percorria toda a casa. Parece que lhe veio à memória a sua amarga infância. Seu pai tinha sido assassinado. Na favela é assim, quase que uma rotina. A vida na favela aconteceu na nossa vida. Digo aconteceu, porque até então morávamos no interior.

Com a morte do pai do meu irmão, mamãe resolveu morar de vez na favela. O pai dele fora criado na “cidade grande”. Por alguns anos nós moramos no interior, perto dos avós maternos. O terreno não era grande, mas sempre tínhamos algo para nos alimentar. A avó materna era acolhedora. Acho que por isso meu irmão tinha mais segurança com as mulheres. Teve boas companheiras na vida. Isso foi a salvação dele.

A vida na cidade, para nós, não era boa porque nos sobrara o pior da cidade, morávamos às margens.

Foi num dia em que o pai dele fora tentar receber um dinheiro lá no “bairro”, que ele morreu. Falaram que fora por engano. O engano é amargo e silencioso.

A notícia chegou lá na roça. Foi triste. A partir daí nosso avô materno descobriu algumas coisas, parece que descobriu, mas ele nunca comentou. Só sei que ele aconselhou minha mãe a se mudar pra cidade. Seria melhor para os meninos – disse ele. Havia uma casa lá pra gente. Essa casa surgiu meio que do nada, de uma forma estranha. Antes ninguém nunca tinha falado nada dessa casa. Quando se é criança, as informações são pela metade. Metade a gente ouve, metade a gente monta. As duas partes nunca se encaixam.

Naquela noite não deu mesmo para sentar-se à mesa. A tristeza é uma companhia indesejável. Não combina com aniversário, com Natal, com Dia da Mães.

Meu irmão colocou um pedaço de carne no pão e saiu.

Eu, calada, entendi meu meio irmão.

Abracei minha mãe.

Barulho de moto. Meu pai estava chegando.

Eu desconfio que meu pai foi quem matou o pai do meu irmão. Traição. Não posso dizer nada. Uma metade da história não se encaixa na outra.

O silêncio reina, o silêncio amarga nosso jantar, é um tempero desagradável.

Eu já era nascida quando meu avô sugeriu que a cidade seria melhor para nós, surgiu essa casa, conheci um novo pai. Monto e remonto nossa história. Sinto que falta uma peça nesse quebra-cabeça.

(Cátia Moura)

Cátia Moura
Enviado por Cátia Moura em 06/12/2019
Reeditado em 06/12/2019
Código do texto: T6812563
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