Desagravo

Ainda era muito cedo quando ele estacionou próximo ao cemitério. Sentia-se extremamente cansado, com uma sensação de corpo moído, não só pelo longo tempo de viagem que teve que enfrentar, mas principalmente pela preocupação em não perder a hora que fora marcada e pela emoção que teria que experimentar.

Na verdade quase não conseguiu dormir durante toda noite, e pouco que dormiu sonhou que a tinha ao seu lado. Despertou assustado e viu que estava enganado. As imagens e fatos antigos de sua vida fluíram e desfilaram em câmera lenta em sua mente. Procurava esquecer como os dias sem ela eram longos e difíceis. Desejava esquecer que por algum tempo riram juntos e foram felizes, como crianças, brincando de amar.

Em sonhos, continuava vendo seus cabelos a esvoaçarem e ainda podia ouvir a voz infantil que afirmava: - “quando crescer vou me casar com você!”. No entanto, em seu interior também ouvia sua voz, agora já adulta, dizendo que o amava mais que tudo no mundo.

O tempo é cruel e faz com que tudo seja quase nada na vida. E isso confirmava o vazio e a sensação de derrota que vinha consumindo-o. A certeza de que ela já não estava ali era realmente uma constatação irremediável. Mergulhar em pensamentos e recordar os anos da infância, da adolescência e da loucura infernal dos anos vividos na esperança de salvar a Pátria, era o máximo permitido. Não conseguiria descrever com intensidade e clareza aquilo que estava sentindo naquele momento. Era um misto de amor pelo que ela fora, com a raiva e tristeza do que lhe acontecera.

Toda realidade vivida desde a infância ainda era magia em sua mente. Nunca poderia imaginar o que a vida haveria de lhe reservar. Há muito tempo havia desistido de tentar adivinhar o futuro. Não se importava com isso, o importante era preservar a memória do passado. Houve um tempo em que suas histórias eram uma só. E hoje sabe que somente a memória pode trazer sua presença física, quase viva, por isso deseja preservá-la.

Desceu do carro, olhou em volta. Achou que havia qualquer coisa de mistério nas ruas desertas. As casas de fachadas sombrias permaneciam fechadas. Nada ouvia, senão o silêncio e a sensação de que as coisas imóveis o observam. Era muito cedo. Tal cenário o fez reportar-se ao bairro que morava quando criança. Eram também ruas simples e casas tristes. Cada detalhe daqueles dias distantes permanecia guardado em sua memória sem se importar o quanto tempo transcorrera. Jamais se esquecera daquela noite, quando estupefato ouviu sua curtíssima e derradeira declaração de amor. Passado tanto tempo ele ainda refletia sobre o que ela significou e o que ela iria se tornar em alguns parcos anos.

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Ele se deu conta de que aquela menininha já havia se transformado em adolescente quando a viu sorrindo ao ouvi-lo pronunciar o seu nome para se identificar junto às recepcionistas - bela princesa para a grande cerimônia de seus quinze anos!

A luz em penumbra tornava-a ainda mais exuberante. Era difícil reconhecer ali a criança que fora, na linda jovem que se transformara. Como ela amadurecera!

Na verdade, nunca dera muita importância àquela menininha tão amiga de sua irmã, que constantemente se encontravam em sua casa para estudarem. Às vezes até se irritava com sua tentativa de aproximação, pois era apenas uma criança inconveniente. Ela com seus nove anos, ele com doze, já se sentindo adolescente, não tinha muita paciência em ouvi-la.

Ainda lembrava o quanto demorou em aceitar o convite feito por ela. Ficara hesitante em enfrentar aquele ambiente, para ele hostil, totalmente diferente ao que estava acostumado. Mesmo assim foi.

A festa fora organizada pelos tios que a criaram e prometia ser um grande acontecimento. O tio, oficial da Aeronáutica, era sisudo e conservador junto aos seus subordinados, porém, em casa preocupava-se sempre em satisfazer as vontades e caprichos de sua esposa e assim, manter a paz familiar. Não medira esforços para que tudo saísse à contenda. A tia, perfeccionista intransigente, trazia sempre em ordem o casarão luxuosamente adornado, o que fazia com que figurasse como a mais importante moradia do bairro simples em que foi erguido. Tudo fora exaustivamente planejado, desde as lindas recepcionistas encarregadas de identificar e acolher cada convidado, até aos músicos contratados. Embora fossem poucos os seus conhecidos, na maioria, parentes e velhos amigos da família, o baile teria que ser realizado de forma esplêndida, como desejava sua tia.

Em seus ouvidos da memória, ainda podia ouvir o conjunto musical executando seu variado repertório de Bossa-Nova, para um salão quase vazio e o tilintar de pratos e talheres que vinha das mesas. Os convidados conversavam calmamente em pequenos grupos. Eram poucos os casais que, em seus passos ao ritmo da música, procuravam exibirem-se como em ferrenha competição. Ele, à parte, ficou observando os músicos que se esforçavam em seus talentos musicais. Era a primeira vez que assistia música ao vivo e isso o excitava, embora se sentisse meio deslocado enquanto aguardava que ela terminasse de receber outros convidados. Seus tios estavam vestidos de maneira elegante. Sua tia aproximou-se e o cumprimentou de forma exageradamente formal, ele por sua vez, respondeu com a mesma formalidade. Não conseguia evitar os pensamentos conflitantes que fervilhavam em sua mente.

Finalmente ela retornou, sentou-se ao seu lado, ficou em silêncio por um longo tempo. Ele percebendo nela alguma tristeza, pegou sua mão e sugeriu: - Já que estamos aqui, você não gostaria de aproveitar essa música e dançar um pouco comigo? – A única coisa que pôde dizer para quebrar o silêncio e fazer com que ela se sentisse um pouco melhor. Ela aceitou sua mão, passando o outro braço pelas costas dele. Para ser honesto não se sentia habilitado a competir com os exímios dançarinos que ocupavam o salão, mas enchendo-se de coragem tomou-a em seus braços puxando-a firmemente para si e se deixou embalar pela melodia.

Mesmo quando a música terminou continuaram abraçados, aguardando a próxima começar. Ela olhou para ele, sorriu com ternura e tocou seu rosto com uma das mãos. Ele inclinou-se em sua direção e beijou-a. Foi quando deu por si e percebeu que estavam sendo observados. Avistaram um pouco afastados, o primo dela sorridente mostrando alegria em ver a jovem dando seus primeiros passos em busca do amor e sua tia, que por sua vez, demonstrava grande contrariedade por tanta ousadia diante de seus olhos.

Eles, contrariados, retornaram à mesa. Sem saber o que dizer ele permaneceu em silêncio. Ela, tentando retornar ao clima pôs-se a falar, quase em murmúrio:

- Já vi muitas festas nesta casa, lembro-me bem. A varanda grande ficava muito clara, com gente em animadas conversas, outros aproveitavam a música no salão e dançavam. Eu, na minha inocência infantil ficava olhando admirada e me sentia contentíssima. Agora tudo mudou. A gente vai crescendo, vai observando e compreende que as coisas não são como pensávamos. - Sentindo-se mais confiante, resolveu revelar um pouco de sua história.

Sua mãe havia morrido no parto e como seu pai, um lavrador do interior, homem simples, rosto queimado pelo sol escaldante de quem luta com a natureza para tirar o sustento para si e sua família, não tinha condições de cuidar dela, sua tia, por ser irmã mais velha de seu pai e por sentir-se abastada suficiente para acolher e dar boa criação tomou-a sob sua guarda, não dando qualquer chance de recusa por quem quer que fosse, era decisão sua, sem direito a contestação.

Assim passou a residir em um ambiente totalmente diferente ao que poderia viver. Seu pai tinha permissão de visitá-la, mas sempre relutava em fazê-lo, pois ficava envergonhado de seu jeito e suas roupas simples. As poucas vezes que a visitou ouviu comentários maliciosos a respeito de não ter assunto, raramente falava, a menos que tivesse algum motivo.

Ele, constrangido em ouvir sua história, vendo as lágrimas que escorriam por seu rosto, tentou reanimá-la, ofereceu-lhe o lenço e ainda forçou um gracejo: - Assim você vai estragar sua maquiagem! Ela prontamente aceitou o lenço e agradeceu com um tímido sorriso.

Quando deram por si, depararam com a figura de sua tia, bem rente a eles. Ela, de pronto, anunciou: - Então filha, já comunicou ao seu amigo que além da comemoração de seus quinze anos, estamos festejando a nossa mudança para Capital? São muitas as alegrias que nos envolvem! Disse isso com sorriso sarcástico, afastando-se em direção a outros convidados, como boa anfitriã.

Ele, sem saber o que dizer, pegou sua mão e fitou seus olhos. Ela, com os olhos cheios de lágrimas confirmou aquilo que sua tia insinuara. Realmente, seu tio fora promovido a um alto cargo a ser exercido em Brasília e a mudança seria logo em breve.

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Mergulhado em pensamentos, sem se apercebeu do tempo que decorrera, reparou então que ao seu lado encontrava-se um cão de olhar meigo e carente de companhia. Fez um gesto de carinho no animal, sendo saudado por este com caloroso latir e alegre abanar de rabo.

Assim que cruzou o portão principal ouviu o sino tocar, anunciando o primeiro sepultamento do dia. O sino soara como um berro dentro de sua cabeça, inquietando-o. Logo à sua frente seguia o enterro que fora anunciado pelo sino. O caixão simples sobre a carreta, empurrada pelas mãos dos profissionais do cemitério, era seguido por umas poucas pessoas em passos lentos, quase solene, olhos grudados no chão. Por certo, o sino tornaria a tocar várias vezes ao longo do dia, e não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino soava-lhe melancolicamente, relembrando-lhe a quem deveria chorar.

Foi acompanhando o cortejo com o olhar até dobrarem a próxima alameda que conduzia à parte pobre do campo santo, destinada aos desprovidos e indigentes. Lá embaixo, a terra cheia de cruzes indicava covas rasas, onde o morto seria levado até a borda do soturno buraco, fugindo para sempre do olhar dos humildes acompanhantes.

Algumas lágrimas invadiram-lhe os olhos. Sua alma percebia que havia diferenças na região habitada pelos mortos. Continuou caminhando no cemitério, sentindo a morte, como se aqueles que ali se encontravam sepultados fossem parente ou amigos queridos. Tudo parecia realmente morto. Presença de vida mesmo só em um pássaro que permanecia pousado na cruz de um túmulo e também o cão vadio que o acompanhava desde a entrada.

O cemitério extenso era dividido em duas áreas. Logo na entrada podia-se ver claramente a divisão com belas sepulturas. As folhas secas laçadas pelas árvores cobriam as alamedas que circundavam os túmulos. Caminhava acolhido pelo silêncio absoluto compatível com o local, que apenas era atenuado pelos passos do cachorro que não parava de segui-lo, como que a consolá-lo.

Ele olhou vagamente aquela selva de mausoléus de mármore escurecido pelo tempo de abandono, que quase se tocavam na estreiteza do espaço. Na verdade, em sua reflexão ainda recordava daquela que foi sua verdadeira paixão e das raras vezes em que discordara dela com relação aos seus sentimentos sobre a morte. Ela afirmava que um grande amor pode acabar por muitos motivos, mas um grande amor não acabará pela morte - fim definitivo da pessoa amada - pode maltratar e doer sem parar, mas o amor permanecerá envolto de saudade.

Ela defendia com veemência o sepultamento, que segundo ela, era a maneira mais humana de conviver-se com o ser amado, gerando uma maior intimidade com aquele que se fora. O simples caminhar entre cruzes e apreciar os anjos melancólicos com as mãos levantadas para o céu de outros jazigos, afirmava ela, provocavam-lhe um sentimento melancólico de estar em uma comunidade viva. Ele, por sua vez, era favorável à cremação. Irritava-o ver amontoado de esculturas, cruzes, inscrições longas, cheias de datas, nomes, tão comum às celebridades mortas, que parecem humilhar os túmulos pobres, num esforço de escapar ao nivelamento da morte.

Na verdade nunca ousou discordar de seus sentimentos e sua vontade. Seu desejo tinha um grande peso. Divergências à parte, ali estava para que seu último desejo lhe fosse concedido.

Para ele a morte era uma coisa distante, até que ficou sabendo que ela morrera. Sentiu como que um soco no coração. O pensamento de que não a veria nunca mais tinha mudado sua forma de pensar.

Anos atrás, (não queria perder-se em contagem cronológica), havia desistido de sua militância política, não se perdoava de ter permitido que as circunstâncias providenciassem os seus descaminhos.

Foi um tempo estranho, delirante, um caos no qual os mais contraditórios sentimentos de alegrias e sofrimentos rodopiavam em tumulto. Ele tinha medo de olhar para dentro de si e tomar consciência do que quer que fosse. Tinha pressa de viver o dia até o anoitecer.

Apesar de existir uma diferença de idade , eram bem parecidos, gostos bem próximos. Ela era uma leitora voraz. Era muito inteligente, bondosa, mas às vezes intransigente em seu pensar, gostava de fazer tudo de sua maneira.

Em sua mente ainda era viva a recordação daquele período de repressão e proibição de expressão política, imposto ao povo. Seus sentimentos faziam com que olhasse com mais clareza para aqueles momentos vividos de amargos dias de total falta de liberdade, pois o golpe militar fora seguido pela ditadura. As notícias da repressão chegavam como se fossem referentes a fatos de um mundo à parte, muito distante, mas os sinais da repressão a cada dia iam se insinuando mais e mais e chegavam bem perto, ameaçando atingir em cheio a todos.

Em 1968 estudantes reuniram-se no Calabouço para protestar contra as precárias condições de higiene do seu restaurante, quando foram surpreendidos com a invasão policial, provocando confronto entre policiais e estudantes, resultando na morte do secundarista Édson Luiz Lima Santo.

Ao constatarem a morte do estudante, seus colegas levaram seu corpo para o saguão da Assembleia Legislativa, onde se formou uma fila de populares e alunos do Instituto Cooperativo de Ensino, que funcionava no Calabouço, colegas de turma do Edson Luiz e de outros jovens pobres que almoçavam no “bandejão” e que, na verdade, nem eram ativistas da luta contra a ditadura, simplesmente lutavam pela preservação do restaurante e ali estavam para velar o corpo, diante violentos discursos de vários políticos. Estava iniciado um dos primeiros protestos contra o regime opressor.

Naquele dia realizava-se a missa de sétimo dia da morte de Edson Luiz celebrada na Candelária. Chegara bem cedo e se posicionara bem próximo do altar e dali observava a nave da igreja ir se abarrotando gradativamente. Os que chegavam informavam às quantas andavam as ruas e proximidade da Candelária. Pelotões de choque, agentes do Dops e fuzileiros navais haviam cercado a Praça Pio X.

Já no final da missa já se podia sentir o efeito do gás lacrimogêneo. O pânico começou a tomar conta da cerimônia mal terminada. Como estava próximo a uma porta lateral conseguiu atingir a rua sem passar pela entrada principal, totalmente ocupada pelas forças da repressão, mas mesmo assim foi perseguido por soldados montados que amedrontavam com palavras de ordem e com o ruído das patas dos cavalos. Em desabalada corrida chegou a um local seguro, onde algumas pessoas procuravam abrigar-se.

Tal foi seu susto ao deparar com ela bem diante de seus olhos. Seu reencontro se passara de maneira quase absurda por ser completamente inesperada. Fitaram-se mutuamente, quase sem acreditar no mero acaso que voltava a uni-los.

Ela, emocionada pela surpresa, aninhou a cabeça cansada em seu ombro. Ele acariciou seus cabelos, sem encontrar palavras para externar seu sentimento, permaneceu em silêncio. Ficou algum tempo a contemplá-la. Ela franziu a testa, piscou o olho, sorrindo disse: - Está admirado de me rever? Não acreditava que um dia nos reencontraríamos? Ele, sacudindo a cabeça: - Nunca imaginaria que nessas condições. Ela continuava com aqueles olhos expressivos, boca vermelha, lábios cheios. E por que não beijá-los? Não resistiu.

E uma nova vida começara naquela tarde de fuga da violência. Assim, passaram a viver juntos aqueles dias, onde a vida não valia muito. Era só o começo de repressões maiores. Pôde perceber que aquela menina sonhadora se transformara na jovem cheia de ideias transformistas em relação aos despossuídos de bens materiais e dos seus direitos básicos de cidadãos. A chave da felicidade é ter sonhos realizáveis e os dela não eram nada fora do comum, razão pela qual ele se apaixonou por ela. Ele se imaginava, ao final do dia, deitado na cama ao lado dela, os dois abraçados enquanto conversariam e riam, perdidos uma nos braços do outro.

Ainda se lembrava do último dia em que passaram juntos. Naquele dia participavam de um comício relâmpago no centro da cidade. Olhos atentos em direção ao palanque improvisado, um pouco afastado de onde estavam. Ouvidos apurados tentando captar as palavras que vinham de um deficiente autofalante. Ao seu redor, jovens carregavam faixas pintadas, panfletos improvisados, cartazes em folha de cartolina. E muitos outros jovens iam chegando. Eram inflamados pela incitação daqueles que estavam com a palavra, tinham certa esperança, um pouco de ilusão, de poderem se vingar daquela opressão. No entanto não percebiam às quantas andavam as ruas e proximidades do evento. Pelotões de choque haviam cercado o local. O pânico começou a tomar conta do evento. E todos tentavam sumir sem deixar rastros, os mais velhos porque tinham enfrentado, em outras épocas, a mesma perseguição por aqueles que se achavam detentores do poder, e os jovens por total falta de experiência.

No meio de tanta confusão procuravam atingir a rua mais próxima, tarde demais. Estavam totalmente cercados, não sendo possível nenhuma resistência. E foram conduzidos com outros presos ao pátio interno da Polícia Central e assim passam a noite amontoados. Pela manhã a triagem dos presos começara. Até então continuavam juntos.

A partir daquele momento começou o isolamento. Ela havia sido separada do grupo. Ele foi levado para uma cela com outros detidos. Mesmo sendo um ativista participativo não era da liderança e sim mero manifestante, o que lhe custou um severo interrogatório e alguns dias de cadeia. Finalmente nada ficara comprovado, quanto à sua participação em atos contrários ao regime totalizante que tomara de assalto o país. Foi posto em liberdade, sem nenhuma explicação ou qualquer pedido de desculpas por seu sofrimento. A única certeza viável é que estaria fichado como terrorista, por infringir a segurança nacional, coisa bem corriqueira naqueles tempos de terror e opressão.

Sua maior preocupação era com o desaparecimento dela. Tentou pelos precários meios de informações descobrir onde ela poderia estar. Já que os órgãos da repressão nada informavam, passou a percorrer hospitais e necrotério em busca de informações sobre entrada de indigentes. Era comum corpos de difícil identificação serem ali largados, como vítimas de acidentes para que fossem enterradas como indigentes, quando na realidade haviam sidos mortos nos cárceres.

Suas buscas, no entanto, só o deixavam frustrado. Mesmo desolado não se deixava abater pelo desânimo de ter alguma pista do seu paradeiro. De certo fora confundida como importante líder de organização esquerdista, tendo os torturadores tentado arrancar informações que estavam fora de seu alcance.

Com grande obstinação passou a integrar a equipe de parentes que procuravam seus desaparecidos. Já haviam se passados alguns anos, mas estava sempre presente nas buscas em sítios demarcados em cemitérios, onde havia sepulturas sem a menor indicação de seus ocupantes, verdadeiras valas comuns.

Naquela manhã, lá estava ele com outros integrantes da equipe e peritos que realizavam mais um trabalho de identificação. A chuva também interrompeu o trabalho de “desnudação” (limpeza) de uma ossada encontrada, não sendo possível identificar o sexo nem quando o corpo foi enterrado. Diante dessa impossibilidade, os restos mortais foram encaminhados a Brasília para comparação com o DNA de parentes.

Foram dias de angustia aguardando a vinda do resultado. Finalmente confirmado.

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Consultou o relógio, ainda faltava muito para o horário previsto para o sepultamento. Continuou a caminhar pelo cemitério, sentindo a morte em sua alma, sofria como se todos aqueles ali sepultados fossem seus parentes. Tudo parecia morto. Presença viva mesmo só o voo de um pássaro que se encontrava pousado no galho de uma árvore próxima e que resolvera pousar sobre a cruz de um túmulo e dali fitava-o, como sentindo a implacabilidade da morte.

Dirigiu-se até um banco próximo a uma sepultura imponente, sentou-se. O silêncio e a espera deixaram-no inquieto. Tomado pela emoção do momento, fechou os olhos, talvez na tentativa de olhar para dentro de si mesmo e se convencer de que era real aquele instante e não um pesadelo, ou talvez para evitar o brilho do sol que insistia em se fazer presente, apesar da escuridão que castigava sua alma.

Não queria sobre o túmulo dela escultura, foto ou qualquer frase de mau gosto que profanasse o que ela realmente fora.

Foi despertado pela lambida de suas mãos pelo cão que, até então permanecera deitado aos seus pés.

Voltou a consultar o relógio, ainda dispunha de trinta minutos. Retornou a entrada do cemitério, viu um banco próximo, sentou-se brusco e pesado à sombra de uma árvore. O cachorro que o seguira, aproximou-se, cheirou repetidamente seus sapatos, como querendo constatar-se da mesma pessoa, ergueu o focinho e lambeu suas mãos. Uma grande fraqueza lhe amoleceu o corpo. Respirou fundo, passou a mão pela cabeça no exato momento em que o sino soara anunciando novo sepultamento. Logo à sua frente surgia um luxuoso caixão sobre uma carreta, empurrada pelas mãos dos profissionais do cemitério.

Aproximou-se, confirmou os dados fornecidos por um dos funcionários.

Na verdade os restos mortais bem que poderiam ser trazidos em uma pequena urna. O que restara do corpo dela fora removido de uma vala comum. Só sendo identificado agora e autorizado seu sepultamento.

Seguiu a carreta em total silêncio até pararem diante de um jazigo de mármore branco que já estava preparado para receber o caixão com o que restou dela. Pousaram o caixão. Um dos carregadores aproximou-se dele e, em voz baixa, perguntou se desejava abrir o caixão. Ele num acenar de cabeço negou e com as mãos deu sinal para que prosseguissem o sepultamento.

Fazia questão de que toda cerimônia não fosse transformada num ato político. Por certo seria uma grande oportunidade para políticos e secretários de direitos humanos do governo. Logo haveria grandes discursos, sem dúvida apareceriam aqueles que se intitulariam como companheiros dela, tratando-se na verdade de meros funcionários encarregados de enaltecer o governo, aqueles que não tiveram que enfrentar a ditadura, a dor do exílio e que têm uma visão meramente ideológica, objetivando principalmente a manutenção do poder nas mãos de grupos que se locupletam com as benesses do momento, onde imperam os desmandos, corrupção, tráfico de interesses e toda sorte de vilania e que se julgam acima do bem e do mal. Pelo contrário, queria uma homenagem discreta.

Um coveiro de ar indiferente vedou a abertura da sepultura, pondo um isolamento final entre seus restos mortais e o restante do mundo, como se tivesse a certeza que o tempo faria vagarosamente o trabalho de uma muralha maior de esquecimento. Terminando o seu trabalho, o funcionário fixou um profundo olhar nele, como que cobrando a gorjeta que, por certo, imaginava merecedor. Cobrança feita, pagamento efetuado.

Terminado o ato, depositou um ramo de flores sobre o túmulo. Pegou no bolso um pequeno caderno, anotou o número da sepultura e deixou para trás aquele local tão sombrio. Tinha que continuar a transitar pelos sonhos e conviver com a realidade, aquela menina, aquela adolescente, aquela mulher que fizera parte de seu existir, se fora para sempre.

Olhou para céu que parecia ameaçador sobre sua cabeça, eram nuvens escuras. Trovoadas e raios se faziam presente ao longe. Uma tempestade se aproximava. Em seu peito uma sensação de quase assombro.

O vento continuava a arrastar as folhas que cobriam os caminhos pavimentados entre os túmulos. E lá se foi ele, acompanhado pelo cão vadio que cismava em ser seu fiel companheiro.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 06/12/2019
Reeditado em 03/01/2020
Código do texto: T6812352
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