O segredo da mulher do deputado
O interfone toca. A secretária avisa:
- Doutor, a senhora Violeta está aqui e deseja cumprimentá-lo.
Anthero faz um rápido passeio mental. Violeta...? A memória ajudou.
- Pode entrar.
Sim, lá estava Violeta, luzindo como luzia na plena juventude. Agora, classe no vestir, conversar, andar. Ainda vendia perfumes, porém, agora, aos milhares, com um clique no computador... e de um escritório no centro de Madri.
A conversa foi rápida. Vinha ao Brasil a negócios, adiantou.
- E visitar você e, como todas as vezes, a ex-mulher do deputado. Porque, agora, ela já é deputada. Desde a separação, tem carreira solo.
A fita do passado soltou-se, lá estavam de novo na mesma loja chique onde a conhecera.
Sim, lá estava ela. Violeta luzia, a predileta entre as filhas de Adão daquele shopping de luxo. Era exatamente como o amigo Libertino a descrevera. Era a flor entre perfumes, cremes, loções, lavandas, óleos de massagem, incenso, retratos de celebridades, painéis luminosos, grandes espelhos... Era a propaganda viva de todos os produtos à venda: cabelo comprido, negro, cuidado ao extremo, olhos verdes-infinito, blusa justa, seios generosos, saia de uniforme e sapatos de salto alto a realçar a exuberância das formas. Exatamente como Libertino a havia descrito.
Além dela, a loja exibia outras moças de saias apertadas, na metade da coxa, mas Violeta pontificava. Cavalheiros desfilavam por ali, sem se definir por nenhuma mercadoria, indo e vindo por ela. Violeta era toda sorrisos, mas se dava ao respeito. Anthero a abordou:
- Preciso de perfume para uma dama – justo conforme Libertino receitara. Tinha que impressioná-la de imediato, mostrar-se um homem superior. Armar o anzol, podia resultar. Poderia ser apenas mais um embate entre um homem, o caçador, e uma mulher, a caça. Poderia.
Violeta atende, sorriso profissional:
- Temos muitas marcas, edições, tipos.... É para sua senhora, filha, namorada? Prove este...
Era o momento de borrifar as costas das mãos do eventual cliente, dar-lhe grãos de café para cheirar e anular um perfume após o outro.
Anthero aceitou de bom grado, a proximidade de Violeta era excitante, protelaria ao infinito aquele momento.
Libertino havia mencionado a “mulher do deputado”, a mentora de Violeta. Depois de minutos, a conversa sobre perfumes e acessórios havia evoluído. Anthero foi "directo al grano", como se diz em espanhol.
- Quem é a mulher do deputado? Como se chama?
- Não posso dizer. É Maria... e mais alguma coisinha. Ela sabe das coisas. Era modelo - você me entende - quando o conheceu. Mas era determinada, tinha projetos, planos, inteligência. Laçou o deputado, tiveram um filho, casaram-se por conveniência ... dele – não ficava bem um solteiro na política - e virou política também.
-Sigo a cartilha dela.
- Como é essa cartilha? Qual a receita? Pode me contar?
- Talvez um dia...
Libertino havia antecipado também esse capitulo. Violeta sempre deixava algum detalhe para contar e manter o interesse em sua história. Da receita mesmo, deixou escapar apenas:
- “Cada amor um passo para a liberdade”.
E secamente, para Libertino, naquela vez:
- Por que você acha que mantenho esse corpinho e me visto tão bem? Que posso esperar de você, tem que deixar claro. Não vou vender perfume a vida inteira. Também vou ser bem sincera: quero coisas em troca de mim.
Libertino antecipou tudo, ele tinha experimentado daquele veneno, mas tinha fugido a tempo. Anthero recordava detalhadamente as informações de Libertino. Tudo correspondia. E viajava nos lábios carnudos de Violeta contando como era sua casa na periferia, quando adolescente, como encontrou trabalho na loja chique, um ícone da cidade internacional:
- Morei até há pouco na periferia. As ruas eram de terra, é barro ou poeira, poeira ou barro. Usava sacos de plástico pra não sujar os tênis. Os sapatos de salto, eu trazia numa sacola para calçar na loja. Vinha de ônibus, depois de moto. Morei com uma amiga, depois com um namorado, num quartinho do centro. Agora já tenho meu próprio apartamento e um carro novo.
Os dentes eram bons de nascença, valha-lhe Deus! Um ou outro cuidado de manutenção um namorado de verão pagou, quando, totalmente louco por ela, inscreveu-a num plano de saúde.
- Não vou ter filho com qualquer um. Não basta querer, tem de mostrar que "pode" me querer.
Era franca. Não havia meio termo: pegar ou largar. Libertino experimentou, reconhece que foi um dos degraus, mas não deu sequência. Gostava de pensar que ditava as regras, porém aquela mulher não tinha mistério: ela mandava. Libertino, por outro lado, era o último romântico, seu prazer era a conquista. Com Violeta era impossível conquistar conforme a cartilha do amor trovadoresco, de castelos, torres e damas inacessíveis. Era outra linguagem, outro código. Libertino recusava-se a aceitar.
Anthero ainda passou algumas vezes para apreciar aquela visão de mundo e comportamento peculiar, longe do universo feminino padrão. Conversaram muito, Violeta abriu o coração, Anthero viu que tinha a aprender com uma pessoa mais jovem. Já não eram homem e mulher, eram seres humanos querendo conhecimento sobre seres humanos.
Às vezes, Violeta se estendia um pouco mais:
- Para abrir caminho na sociedade é preciso ser decidido, há poucas saídas. Para a mulher pobre é quase impossível. Está sempre submetida a alguém, quase sempre um homem. O mundo é cruel, se for preciso, vou ser cruel também. Vou falar a mesma língua.
Nessa época, de perfumes mesmo, Anthero comprou só um, só aquela primeira vez: perfume para cavalheiro.
De volta ao presente, constatava que o tempo tinha passado para ambos, sem dúvida. Porém, em outro plano, parecia apenas uma conversa interrompida na véspera. Havia uma atração recíproca fora do prosaico, não era sexo nem dinheiro nem qualquer carência psicológica. Continuavam sendo dois curiosos viajantes da vida.
Combinaram jantar naquela noite, incluíram Libertino, que não apareceu nem se desculpou. Encontraram-se outras noites mais, até que chegou o dia de levá-la ao aeroporto, Madri a esperava ansiosamente. Não foi ainda daquela vez que Anthero obteve a receita completa, o segredo da mulher do deputado.