A FILHA DO CÃO
 
“O dia mais longo do homem dura
 menos que um relâmpago.”
— Lêdo Ivo
 
 

 
Quando fui me aproximando de casa, ainda com os pés molhados pelas águas do rio, avistei um homem com um chapelão na cabeça, acocorado e riscando o chão da frente. Conheci que era o primo Damaso. Assim que me viu, ergueu o corpo e gritou quase chorando:
     — Ainda bem que você não estava aqui! Foi uma tragédia, Justino.
     E continuou:
     — O desgraçado do Cão, na companhia dos seus jagunços, já desceu atirando e meu velho tio Juarez não teve tempo ao menos de se virar para ver quem acertou-lhe a nuca. Eu que estava limpando a pocilga fui o único que consegui escapar.
— E Anita e Laís? Onde estão minhas irmãs? — perguntei.
— Aqueles infelizes as levaram. Amarraram as criaturas e desceram a ladeira puxando-as com seus cavalos enfurecidos. Foi horrível!
 — Lamento não ter evitado toda essa desgraça, primo. Mas a única coisa que pude fazer foi evitar que me matassem também, fugindo depressa e me escondendo dentro da mata — continuou falando com pesar.
     Damaso e eu crescemos juntos. Depois de meu pai e das irmãs, nele que depositava meu maior afeto. Desde que seus pais morreram no tempo da contaminação das águas – quando a cólera dizimou um terço dos que moravam aqui –, meu pai trouxe-o para morar em nossa casa, ele com três ou quatro anos apenas. Aprontamos muito por essas bandas, na adolescência. Lembro bem do dia em que roubamos dois cavalos da fazenda grande só para brincar de corrida de argolinha. Por pressa e descuido, uns cinco machos bravos, que ainda seriam domados, fugiram pela porteira que deixamos aberta e ninguém conseguiu recuperá-los. Nem o dono nem ninguém mais, felizmente, jamais descobriram que fomos nós. Desejávamos diversão e naquele tempo o pai não tinha cavalos, só criava porcos e umas poucas galinhas. Hoje Damaso é um homem feito, forte, alto e de boa aparência; uns dois anos mais velho que eu. Cresceu conosco e continuou morando em nossa casa. Bem disposto, sempre ajudava meu pai a cuidar da criação de porcos. No meio da tragédia, fiquei contente por encontrá-lo com vida e saudável. Ainda mais agora que, além de primo, é meu único parente vivo.
     Eu que culpava Deus por ter levado minha mãe quando só tinha onze anos, agora tive de agradecer por poupá-la de tamanho sofrimento. Ela que foi mãe de leite de tantas crianças desnutridas na redondeza, não suportaria ver suas filhas serem violentadas e depois arrastadas por aqueles homens.
     Havia passado o último ano cuidando das ovelhas de meu pai numa porçãozinha de terra fértil que ficava nuns serrotes ao sul, e por isso nem pude socorrê-lo enquanto agonizava seu derradeiro fôlego. E nunca mais vi os rostos idênticos das minhas irmãs, as gêmeas Anita e Laís, nem o seu afeto. Agora restava em mim a lembrança última do dia em que as deixei dormindo e tive que fugir para longe.
     Juarez Ferreira, o velho pai, que sempre prezou pela paz e nos criara tão bem, as gêmeas com seis anos apenas quando nossa mãe faleceu, não contava que seria eu, seu único filho varão, a causar as maiores dores e esfacelamento da família. Ele sempre me dizia para criar juízo, falava para sossegar, e mandava procurar uma moça boa para me casar – queria ser avô de muitos netos.  Eu, porém, nunca lhe dei ouvidos. Na verdade nunca gostei de apascentar ovelhas e nem qualquer outro animal – não levava jeito para essas coisas. Meu negócio mesmo era disputar corrida de argolinha e namorar as moças do povoado, todas as que pudesse. Por causa das competições, fiquei conhecido pela pontaria certeira que me levava a ficar sempre entre os três melhores. Mas era minha fama de femeeiro meu maior orgulho. Nunca encontrei grandes dificuldades para conquistar as moças daquele lugar. Por mais difícil e arriscado que parecesse, elas sempre cediam e isso me instigava a partir em busca da próxima. Se eu sentia remorso? Nunca soube o significado da palavra. Era muito novo e queria me divertir, alimentar o corpo viçoso com o máximo de prazer, mesmo que isso custasse o sofrimento a muitas. Lançava assim sem constrangimento, aqui e acolá, juras de amor ao vento.
     Teve uma vez que tirei sete argolinhas e ganhei a competição. Foi no dia em que esbarrei com Antonella, a filha do temido coronel Amoz Malicado. Antonella era alta, de rosto fino, olhos grandes e castanhos claros, e cabelos pretos e compridos. Tinha uma silhueta modelada com ancas redondas, coxas torneadas e uns peitos grandes e duros; era uma mulher formada, carnuda, diferente de todas as mocinhas magrelas com quem havia deitado. Ao mirar seus olhos senti como se fosse arrastado para dentro deles e tive a certeza de que ali queria me afogar. Todos do lugar, inclusive mulheres e crianças, paravam para ver as disputas sempre apertadas, e que eram a única animação capaz de reunir tantas pessoas sob aquele sol escaldante. Antonella estava encostada na cerca, sob a sombra de um frondoso pau d'arco, e junto dela agarrando suas belas pernas uma menina de uns cinco anos que depois soube ser sua irmã. Um pouco mais distante, por detrás, vi o coronel Amoz Malicado montado eu seu cavalo baio encerado. Era um admirador e patrocinador das corridas – talvez fosse a única coisa que gostasse no mundo além daqueles dois seres que observava. Ele as olhava fixamente como se pastorasse uma tonelada de ouro. Era o tipo de homem que só de ver dava medo. Ninguém sequer tinha coragem de encará-lo e em toda aquela região homem algum havia ousado cortejar sua filha. Os boatos davam conta de que grande parte de suas terras foram arrancadas de vizinhos a quem mandava matar para aumentar seus latifúndios. Sisudo, era de pouco falar, mas quando pronunciava algo sua voz rouca e impostada parecia a de cães quando acoam para em seguida devorarem suas caças. Talvez, também por isso todos dali chamavam-lhe o Cão.
     Depois daquela rápida troca de olhares – nem sei se posso dizer assim, pois Antonella não correspondeu com mais que um discreto soslaio –, voltei para casa como o campeão do dia e com uma vontade imensa de também conquistar aquela intocável e irresistível mulher. Apesar de moço, sabia bem quando uma mulher queria muito além do que fazia parecer. Cheguei em casa perto do anoitecer e antes mesmo de falar que tinha vencido mais uma disputa, aproveitei que meu pai estava saciando a fome dos porcos, chamei minhas irmãs num canto e disse:
     — Preciso que levem este bilhete até a filha de Amoz Malicado, uma moça chamada Antonella. Entreguem a ela o quanto antes e cuidem para que ninguém saiba.
     — Melhor não Justino! — replicou Anita. Soube que o último que tentou cortejá-la foi amarrado pelas bolas e puxado até o fim da ladeira grande preso ao cavalo do coronel. 
     — E decerto nosso pai não irá gostar nada em saber que está com mau intenção justo com a filha do desalmado — Laís completou.

     — Ah, parem de bobagem! Não digam tolices! Antonella é como qualquer outra, com a diferença que é a mais bonita de todas — insisti.
     Eu que sempre convencia minhas irmãs, entreguei um pequeno bilhete que pedia para Antonella ir até o riacho fundo pelo horário do meio-dia, no dia seguinte. Sabia que não haveria de recusar. Nunca me enganei com as mulheres e aquele olhar disfarçado estaria pronto para dizer sim a tudo que pedisse, mesmo que isso custasse sua própria vida. Era uma pequena lagoa que ficava atrás da casa grande onde morava e ela não teria problema em ir sozinha pois seria para banhar-se. Na noite que antecedeu o encontro quase não consegui dormir de tanta ansiedade. No outro dia, na hora marcada, cheguei escorregadio por entre os salgueiros e avistei aquele corpo nu, bronzeado, entrando e saindo da água.
     — Como um ser podia ser tão encantador? — questionei quase duvidando.
     — Superava em beleza a todas que havia tocado — falei pra ninguém ouvir, só no pensamento, absorto pela linda cena.
     Antes de me aproximar observei com cuidado todos os lados para ter a certeza que éramos os únicos ali. Confesso que de todas com quem deitei, aquela foi a que fiz menos esforço para tê-la – aconteceu tudo muito rápido. Aquela mulher mostrou que minha vontade era ínfima diante da vontade dela. Eu que queria devorá-la desde o primeiro instante que a vi, fui primeiro engolido por ela. Como os peixinhos que nadavam naquelas águas tranquilas onde nos amamos, foi assim que me senti dentro daquele corpo grande e quente – um tudo e um nada extasiado pelo prazer de percorrer seus relevos, ao entrar e sair de dentro dela.
     Agora que se passou um ano desde que tive que fugir às pressas, nunca descobri como o seu pai soube tão rápido daquele nosso encontro amoroso. Só lembro das mãos me sacudindo e da voz ofegante do meu pai dizendo, após ouvir os cascos do cavalo do Cão revirando as pedras que davam para a entrada da nossa casa:
     — Acorda Justino! Sobe no cavalo e sai depressa por esse caminho estreito e só pare quando avistar nosso rancho nos serrotes do sul, e não volte de lá até que eu mande buscá-lo.
     Isso aconteceu na alta noite daquele mesmo dia em que pude experimentar o verdadeiro prazer, aquele que só Antonella foi capaz de me dar. Precisei sair rapidamente e sem se despedir das minhas irmãs que dormiam tranquilamente.
     Só fiquei sabendo agora, por meu primo Damaso, que o coronel Amoz Malicado ameaçou meu pai que voltaria no dia seguinte para lavar a honra de sua filha e acertar as contas comigo, e caso não me encontrasse, seria o sangue dele e de minhas duas irmãs que haveria de reparar todo o mal que causei. Damaso também me contou que o Cão fez questão de gritar para todos do povoado ouvirem que amava Antonella duas vezes, como primogênita e segunda mulher – ele a havia tomado para si desde os seus quatorze anos, logo após a morte da mãe. A menina que sempre acompanhava Antonella e que era sua única companhia, além de filha era sua irmã, pois também era filha e neta do maldito. Nem esperei o dia findar para me despedir de meu primo. Subi no mesmo cavalo em que fugira um ano atrás e voltei para o rancho do sul, num misto de excitação e regozijo por estar vivo, o que era muito, e também por ter conseguido triplicar os rebanhos de ovelhas do meu pai e já iniciado a criação de gado.
     Ao regressar à minha casa do rancho do sul, continuei investindo todo esforço para fazer prosperar aquele negócio da criação de animais que por muito tempo, apesar da insistência do pai, nunca tinha dado importância. Os anos bons de inverno favoreceram o crescimento de uma pastagem boa na terra, com muita água por todo canto. Tudo prosperou. O trabalho árduo que tirou de meu corpo cada gota de suor dia após dia debaixo do sol, transformou-me no maior criador de ovinos e num dos maiores de bovinos daquelas bandas do sul. Das ovelhas lucrava com a venda da lã; do gado vendia a carne seca, além do queijo e manteiga. Nem sei de onde veio tanta força. Na verdade, sabia que pobre do jeito que nasci não poderia realizar meu desejo de vingança, e muito menos dar uma vida abastada para Antonella. Trabalhei de sol a sol e hoje me chamam de coronel, coronel Justino Ferreira.
     Os acontecimentos tristes que carreguei todo esse tempo serviram, entre tantas, à duas coisas. Criar em mim uma raiva que cresceu a cada dia e se transformou em sede cega de vingança – a imagem de minha família sequer sem direito a enterro cristão. Segunda, a certeza de que o tempo só aumentou meu amor por Antonella. Até tentei outras mulheres, muitas, mas dia não teve em que não lembrasse dela – eu a queria e estava disposto a enfrentar tudo para que isso acontecesse. Agora que tinha posses e poder, não me faltava mais nada. Não haveria de temer homem algum, nem o sanguinário do Cão.
     Passados quase dez anos resolvi voltar à terra bendita. Ou maldita? Escolhi sete homens dos mais valentes que trabalhavam para mim, todos alçados em armas e muita munição. Preparamos os animais, os mantimentos, e partimos. Depois de puxados nove dias subindo e descendo veredas de pedras, atravessando arroios e nos secando de poeira, finalmente chegamos. Não quis esperar. No mesmo dia, pelo entardecer, tratei de assuntar com alguns velhos conhecidos notícias de Antonella e do maldito. Para surpresa e decepção fiquei sabendo que Amoz Malicado não passava de uma lembrança ruim para aquelas pessoas – fazia cerca de onze meses que o desgraçado passara dessa para pior, e de forma suspeita. Comentava-se que havia sido envenenado pela própria filha Antonella. Alguns comemoraram como um ato de coragem; outros diziam que a desgraçada, sangue do mesmo sangue ruim do pai, junto com seu amante e agora marido, tinham tramado a morte dele, que já andava mal, para ficarem com suas terras, fortuna e tudo mais. Quis saber apressado quem era o homem que dormia com ela. Não contava com a resposta seca do Otaviano, um velho lúcido, amigo de meu pai e que me conhecia desde criança.
     — Ora, ora seu Justino, é o seu primo Damaso — respondeu com ar de deboche.
     Naquele momento senti como se o mundo desabasse sobre minha cabeça. A raiva tomou conta de mim, como se meu sangue estivesse fervendo e me derretendo a carne.
     — Voltar aqui foi uma perda de tempo! — pensei. Não respondi nada ao velho; apenas lamentei e saí.
      Não poderia cumprir nenhum dos meus propósitos. Nem matar Amoz Malicado e nem ter Antonella, afinal, ela não merecia meu amor. Não consegui sentir raiva de Damaso e nem queria lhe fazer mal. Não quis vê-lo e nem o procurei. Só restava voltar e retomar os negócios. Pensei em deixar aquele lugar na mesma hora, mas resolvi deixar meus homens descansarem mais um pouco e saí para procurar sossego. Fui sozinho até a venda antiga procurar uma bebida que me fizesse esquecer. Queria uma coisa forte, como absinto ou conhaque, mas o dono da baiuca serviu-me algo novo, um tal de pulque – disse que chegara há poucos dias pelas mãos de arrieiros que atravessam a fronteira. Bebi muito e quanto mais bebia mais lembrava de Antonella – a primeira vez que a vi, quando me olhou com aquele olhar ligeiro.
     Não lembro direito, mas já devia ter entrado na madrugada. Virei o último copo, deixei umas moedas em cima do balcão sujo, onde me apoiava, e fui embora aturdido.
     O dia amanheceu e com ele um vento forte e rasteiro. As ruas estavam cobertas por uma poeira espessa e escura, portas e janelas fechadas, impossível abrir os olhos – era a borrasca, comum no início de setembro.
     Ambrósio, homem de confiança e chefe do bando do coronel Justino, apreensivo pela demora do patrão, resolveu não mais esperar e saiu à sua procura. Reuniu os outros seis e ordenou que batessem de porta em porta, vasculhassem cada canto e lugar. Ninguém tinha visto Justino desde a hora em que emborcou o último gole da bebida forte. Nenhum sinal, nem do cavalo. Intrigados e sem alternativa, Ambrósio e seus cabras providenciaram mantimentos e fizeram o caminho de volta. Tinham esperança de que o coronel, aterrado pela desilusão, tivesse retornado sozinho ao rancho do sul. Voltaram a galope apertado, quase não parando para descansar. Apearam. Tudo como antes, sem rastro do coronel Justino. A notícia espalhou-se com medo por aquelas serras e grotões. Sem eco.
     O velho Otaviano, anos depois no leito de morte, com voz quase inaudível, revelou a poucos que na madrugada da bebedeira havia visto o vulto do homem cruzar as porteiras da fazenda de dona Antonella.