O ENTERRO
 
 
 
 
 
 
 
Em La Consagración tudo é igual como parece ser em todas as cidadezinhas desse mundo distante. Durante o dia dá para sentir o calor como uma brasa apertada sobre a face, e à noite o frio como gelo a penetrar a carne. Mas a terra é produtiva. As plantações de amendoim fazem do verde a cor mais apreciada desse lugar. O que dá gosto mesmo e enche os olhos é ver todos os dias os campos se encherem de crianças, brincando por todos os lados na vastidão.
          Cheguei ainda na adolescência e vivi aqui os meus melhores dias. Cresci, envelheci e nunca quis ir embora – estou convencido de que La Consagración é o melhor lugar que poderia encontrar para desfrutar a minha vida. Hoje, porém, me sinto fraco e cansado, como se meu corpo fosse incapaz de executar a menor de minhas vontades. Sei que o fim está próximo e o que me resta são lembranças, por isso não paro de revolvê-las e cuidarei que seja assim até meu último suspiro. Carrego muitas histórias – o único peso que meu corpo acabado ainda consegue suportar –, talvez por testemunhar nos ossos do ofício tantas despedidas dolorosas.
            Moro em um povoado sem qualquer aura ou algo que possa, por assim dizer, lhe pôr em destaque; a não ser o curioso fato de que aqui, há anos, não se enterra ninguém. E o motivo não é o das pessoas não morrerem ou serem fantasmas, claro que não. Acontece que o cemitério encontra-se lotado e não tem espaço para mais outro corpo – a pequena Angel, uma criancinha de dois anos que morreu de uma terçã repentina que nunca passou, foi a última a ser enterrada aqui. Apesar dos anos terem me transformado em um ser decrépito e solitário, nunca esqueci aquele dia. Primeiro, porque a comoção tomou conta de todos, até dos menos afetuosos. A menina deitada naquela caixa de umburana, e o acompanhamento das excelências, foi suficiente para arrancar lágrimas de todos os presentes. Segundo, porque foi aquele o dia em que cessou minha atividade de coveiro – após trinta anos de trabalho duro, sendo o único incumbido da tarefa.
     A partir daí, todos que iam sendo abandonados pela vida precisavam atravessar o rio para só então encontrar descanso nas terras distantes de Cruce, uma cidade maior e a única que aceitava dividir seu cemitério com outra gente – uma verdadeira peregrinação para os vivos que tinham a trabalhosa missão de sepultar os seus mortos. Naquele então, a crença de que a alma só encontrava repouso se o corpo descansasse em lugar reservado já era forte o bastante para afastar qualquer tentativa de enterro fora do campo santo, e assim, ninguém arriscava cometer o pecado de enterrar quem quer que fosse dentro dos muros da própria cidade.
     Alejandro e Alba Soledade, que comigo e meus falecidos pais habitaram primeiro esse lugarejo, são os únicos que ainda guardam atenção a esse velho lânguido; sinto que fazem isso não por pena, mas por amizade verdadeira, imune à corrosão do tempo. Apesar de todos se avistarem, pouco se sabe sobre eles. Alejandro trabalhou a vida toda na cultura do amendoim. Sua esposa é uma mulher muito reservada, com ares de amargura até, e moram na casa mais distante e indesejada do povoado, a que fica bem ao lado do cemitério abarrotado. Mudaram-se para lá em data incerta e por motivo ignorado.  Mesmo sendo amigo de Alejandro desde os tempos de solteiro, tenho a impressão de que também sei pouco ou quase nada sobre os dois. Ele continua sendo o homem retraído e ensimesmado de sempre.
     Lembro-me bem de quando Alejandro me contou, com entusiasmo e sorriso no rosto, do dia em que começou namorar a Alba.
— Tenho muita sorte. Ela disse que me amava, Ezequiel! — falou todo abobado.
Além de amigo, tornei-me uma espécie de padrinho para o casal. Isso foi há mais de seis décadas. Alba era apenas uma mocinha comprida, de olhos castanhos e um longo cabelo preto; contava quinze anos apenas. Alejandro não devia ter mais que vinte. Depois do primeiro encontro só se passaram onze dias para que ele perdesse o medo e a pedisse em casamento. Aquele encontro casual parecia ter sido coisa de outra vida; nem eles sabiam explicar por que haviam se apaixonado tão repentinamente. Pedido aceito e um ano após Alba já estava grávida. Completando-se os meses normais a espera chegou ao fim: os amigos foram agraciados com o nascimento de uma linda menina. Naqueles dias a comunidade fervia de gente – eram os festejos anuais de Santa Eulália. Sob a benção do padre Ramiro batizaram a mais nova criatura. Mas isso foi há muito tempo e ninguém, além de mim e dos Soledade, restou para recordar aquele dia. Nem mesmo o anoso padre que continua vivo, mas esquecido de tudo, pode lembrar, pois sua memória e pernas padecem até hoje com os danos do tombo de uma mula que sofreu logo no início do seu ministério.
     Nos tempos de hoje, Alba que nunca sai de casa, a não ser uma vez ao mês para a missa de domingo, aparenta estar mais cansada e esmagada pelas dores da vida. Nunca a vi tão desanimada – parece carregar uma tristeza que supera três vezes o peso do seu corpo. Sem filhos, sua única companhia continua sendo meu amigo Alejandro, a quem ainda ama com o mesmo amor correspondido de sempre. Na última semana, ele contou-me que um dia logo ao despertar, ela que parecia pressentir o fim, fez com que jurasse, segurando em suas mãos trêmulas e mirando em seus olhos marejados, que no dia de sua morte ele cumpriria o último pedido dela, que ficou anotado num escrito guardado debaixo do catre em que dormiam juntos. Alejandro meio incrédulo abanou a cabeça e falou baixo algo que soava como um penoso sim. Confidenciou-me toda a conversa que tiveram.
     — Dessa vez sinto que a estou perdendo de verdade, meu amigo — e com essas palavras finalizou o diálogo.
     Alguns meses se passaram e Alejandro, intrigado pela demora inusual de não ouvir a voz de sua mulher logo cedo chamando-o para o café, voltou ao quarto e viu que ela estava friinha.
Ouvi batidas como de alguém que queria derrubar minha porta e em seguida gritos que foram convertendo-se em meu nome. Era cedo, fazia muito frio, e por isso eu não tinha levantado ainda; na verdade me faltavam forças para isso. Percebi que era a voz de Alejandro. Endureci meu corpo morno e como quem gasta seu último estoque de vigor fui abrir a porta.
     — Perdi minha Alba, Ezequiel — disse chorando, enquanto me abraçava.
     Aquele foi um domingo diferente, triste, com um sol escuro e um céu desbotado, como se a noite insistisse em não querer terminar. Desde a povoação de La Consagración, foi a primeira vez que ninguém derramou uma gota de suor. Não choveu, mas era possível apoiar-se no frio.  Fomos até a igreja para falar com o padre Ramiro – Alejandro na frente a passo largo e eu sempre atrás, sucumbido pelo cansaço. Entrou chorando e sem devidamente cumprimentá-lo, pediu-o que preparasse tudo o mais depressa. Que cuidasse de avisar a todos que antes do clarear do dia seguinte sairiam até Cruce para fazer o enterro.
     Retornamos para a casa dele. Tratei de beber um pouco d’água e sentei-me para descansar próximo ao defunto. Enquanto isso, observava que os olhos de Alejandro pareciam imitar aquele corpo inanimado – não mexiam nem por um momento. Ele ficou parado, pôs sua mão sobre as mãos frias dela, e como se fosse absorvido por uma chuva de pensamentos, permaneceu assim por quase um quarto de hora. De repente, voltou a si e foi aí que recobrou a memória do pedido que sua amada fizera jurar que cumpriria, quando ela partisse dessa vida. Precisei ajudá-lo a levantar o catre, onde o corpo permanecia imóvel, para ter acesso ao papel. Pegou, leu e não conteve as lágrimas. Não voltei para casa. Durante aquele dia e aquela noite ocupei-me da difícil tarefa de consolar meu amigo, quando também carecia de consolo.
     O padre que já tinha preparado tudo, conforme o combinado, chegou quando ainda era madrugada para dizer a última reza antes de partirem. Lá fora só alguns amigos e curiosos – porque já não tinham parentes – aguardavam a saída do corpo para seguirem até a outra cidade. Quando o primeiro raio de luz adentrou a casa, Alejandro pegou o papel e leu para que todos ali ouvissem o desejo último de sua amada, que dizia: “Quero ser enterrada no meu quarto, embaixo da minha cama, para que eu fique perto dos meus dois amores, eternamente. Só assim poderei descansar em paz. Este é o meu desejo. Assina Alba Soledade”. Foi como se pudesse ouvi-la pela última vez – a voz de Alejandro parecia misturar-se à voz da falecida ao ponto que aquilo transformou-se em eco que grudou nas paredes da casa e nos meus ouvidos.  Por um instante tudo emudeceu. Em seguida ouviu-se ruídos, murmúrios que se tornaram palavras de desaprovação. Um a um foi deixando a casa – indiferentes à petição –, até que restou apenas eu e Alejandro para executá-la. Foi quando passei a acreditar que enquanto houver vida haverá sempre alguma missão para cumprir – até mesmo para velhos como eu. Precisei tirar forças de onde não tinha para atuar como auxiliar de coveiro junto ao amigo – a última vez que revivi a minha profissão.
     Após esse dia, todos em La Consagración ficaram sabendo que a última pessoa enterrada no cemitério da cidade, há mais de sessenta anos, havia sido a filha única do casal Soledade. Por esse motivo eles se mudaram para a casa de aspecto sombrio, que todos rejeitavam, aquela em que a janela do quarto ficava a não mais que dois metros de um pequeno túmulo branco, onde era possível ler a inscrição alteada: “R.I.P, ANJO NOSSO”. 
 
 
 
 
 
        
Wesley Almeida Paiva
Enviado por Wesley Almeida Paiva em 04/12/2019
Reeditado em 04/12/2019
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