A MORTE E AS MORTES INVENTADAS DE JOSÉ

A MORTE E AS MORTES INVENTADAS DE JOSÉ

PERIÉLIO - Antes da Terra o Sol já existia e antes do Sol nenhuma história tinha sido contada, as estrelas dormiam no silêncio explosivo e o eterno profundo nunca imaginado era uma cabeça de boca fechada. Quando a solidão perfeita encontrou desconforto o Sol projetou uma sombra imensa sobre a engrenagem das esferas e a Lua tremendo como se fosse parir derramou sobre a duas terra lágrimas e tudo começou.

Quem me contou essa primeira história foi uma estrela anciã enquanto morria engasgada na pouca luz que ainda emitia. Ela me aconselhou que observasse a vida breve dos corpos celestes dizendo que ali eu encontraria consolo para minha curta permanência.

Os homens viviam na escuridão, por isso tinham medo. O medo os fez investir destemidos sobre o fogo, sobre as águas e as montanhas. Os homens dominaram os elementos fundamentais e todos os animais, mas sucumbem à morte vagando de um lugar para outro o tempo todo. Há os que se perderam nas florestas e criaram altares nos troncos das árvores para fixar sua memória em fiapos de eternidade. Outros foram longe para encontrar abrigo e sobre o gelo que cobre o oceano levantaram estátuas com a cara da própria morte para tentar enganar o tempo.

Os antigos fizeram essas coisas, esses homens não. Para os homens do deserto, a Morte ergue sua mão da aurora ao crepúsculo.

E ali estão eles, pisam na areia cristais braseiro, suas pegadas marcam a vastidão. Descrentes porque sabem seu destino, na Terra esses peregrinos são mortos que andam insepultos. Caminham em busca das nascentes, dos metais e dos amores que lhes acrescentem compaixão, no tempo brevíssimo da sua passagem inventam histórias e as contam para seus filhos.

As histórias passam de pai pra filho, são tantas como a areia escaldante e nascem do desejo que os levam a sujar as mãos no sangue dos fracos. A guerra é a única certeza por aqui. Todas as histórias nascem sujas de sangue, mas não esta. Essa história é uma história de amor, vou contar o que vi no brilho verde de duas estrelas irmãs, as Mais belas esmeraldas, os olhos de Raquel, poço tão profundo quanto cristalino. Essa é a história de José, filho de Raquel. Ou, a história das mortes inventadas de José.

AFÉLIO - É a solidão e só depois dela o amor é o motivo de se contar histórias. A solidão pode ser um lugar agradável por um tempo, estou matando José mais de uma vez antes mesmo de mostrar o rosto dele. As personagens dentro das histórias nunca morrem de verdade, nunca existiram como você e eu, eu e você morreremos. Os personagens mudam de nome, absorvem traços de outros, aprendem e adaptam-se às circunstâncias e permanecem fortes como gostaríamos de ser para permanecermos eternos.

Não fosse ter visto José no ventre estéril de Raquel, nos sonhos apaixonados de Jacó e no ódio que envenenou as entranhas de Leia e Bila, este personagem que demora sair seria apenas continuidade macilenta emporcalhada do primeiro homem criado. Como se os homens não passassem de gotas no fluxo interminável da água nos ciclos sobre, entono e dentro da terra. Onde não temos água percebe-se melhor a vastidão dos desejos, a sede, a solidão e o deserto.

Nenhum lugar desse mundo nos ensinaria a solidão melhor que Padã-Harã.

Logo que chegou aqui, Jacó conheceu Raquel, a filha de um homem despótico e rústico como os cacos da cabras, homem que não pôde ter outro ofício que não o de arrebanhar para se tornar rico.

Logo que chegou aqui, Jacó conheceu Raquel, a filha de um despótico simples homem que não pôde ter outro ofício que não o de arrebanhar cabras para se tornar homem e rico. Lá vão, Lobão, Labão. O tal é irmão de Rebeca, a mãe protetora de Jacó, Labão. Labão fez esse acordo com o futuro genro. Jacó pagaria o dote, se quisesse desposar Raquel, trabalhando como escravo por sete anos. Muitos fizeram isso, pobres escravizados pelo amor. Mas Jacó precisava ter muitos filhos se queremos José vivo. Então, fora enganado e, bêbado nas núpcias, engendrou a semente de Judá no bucho de Léia, a mais velha e gêmea de Raquel. Não minto quando reconto o sabido, tudo é verdade. Preambulo, de rondar a terra já disse, e me canso, mas não Jacó que trabalhou escravizado mais sete anos para trazer nossa personagem para os seios de Raquel.

E foi assim, depois de se deitar com a irmã Leia e as servas férteis Zilpa e Bila que Raquel finalmente concebeu. Trouxe para esse começo de mundo José e Benjamim. Únicos e amados, talvez porque Jacó já fosse velho e descrente quando isso aconteceu.

Fosse essa história outra, ou a mesma contada em tempo diferente, estranharíamos esta união tempestuosa cheia de disputas entre mulheres por um homem, entre homens por terra, entre posses e amores roubados. Ou não, que o mundo é mundo desde a primeira solidão. Leia gerou seis filhos e uma filha e Raquel apenas dois. Entre os de Leia, Judá e Levi descenderão reis e sacerdotes, personagens perenes para todo história. Também de Raquel descenderão reis, mas passageiros como a sombra do meio dia.

A sombra do meio dia, a fome, a beleza e o cansaço na lida. O que mais seria tão passageiro se tudo que vejo na terra só está lá porque vejo?

A esperança retorna no dia em que José nasceu. Nem o cansaço ou a ameaça edomita no sul tirará nossa paz. Quando a noite enche de silêncio a tenda, nos braços de Raquel, a personagem principal com fome.

- Mãe, leite!

A voz que ouvimos não é de Benjamin, o mais novo. Que engano, é José.

José sugou a parte de Benjamim nos peitos de Raquel.

- Mãe, leite!

José e Benjamim descansam à sombra da arribana coberta da palha seca das palmeiras jumeirah. O caçula ficará em casa, Benjamim é frágil como o frescor da manhã. Para os outros, trabalho. Acontece aos prometidos que a terra dada é carente de mãos e obras. Por isso vêm por aqui os filhos de Leia, Bila e Zilpa.

- Leite, mãe! A voz insistente sai da boca cheia de dentes grandes de José. Ele diz sonhar com outros mundos e outros tempos, em todos os sonhos sonha com astros e estrelas, José sonha consigo e nos conta:

- No final da tarde os operários de um senhor muito rico reuniram a produção do dia. O vime que seria cesto, cestos que viajariam o mundo. Os homens, enfileirados, eram pagos segundo a quantidade colhida. Mas, de repente, os feixes se tornaram os próprios trabalhadores que se tornaram os doze filhos do nosso pai. O único de pé, feito homem, era o meu feixe de vime. Os demais se curvavam ao meu redor, declinam em reverência.

A soberba nas palavras de José acende a cólera no coração de seus irmãos.

É verdade, sonhei. E no centro, como sol entre estrelas, meus olhos viram dez luas girarem ao meu redor.

- Mãe, quero mais leite.

Os dez filhos de Lia caminham juntos, ao meio dia longe das arribanas de Jacó, e planejam por fim à vida de José. Rúben, Simeão, Levi, Judá, Dã, Neftali, Gad, Aser, Issacar e Zabulon concordaram que a vida dele, o orgulho de sua miséria, deve ter fim. Vão matar José. José morreu, e foi assim.

ECLIPSE - A PRIMEIRA MORTE DE JOSÉ - Pai, teu filho foi devorado por feras. Rubén mostra a túnica colorida que diferenciava José dos outros filhos de Raquel. A túnica, sempre alvejada, era a declaração última da predileção de Jacó por José. Agora, ensanguentada nas mãos velhas, parece restos de um corpo jovem. A lembrança do menino que ainda não vivera seus sonhos, o pesadelo dessa vida no deserto.

– Oh, Deus! Um inocente levado. Levai este pecador para junto de Ti.

A SEGUNDA MORTE DE JOSÉ - Dã advinha a maldição que cobrirá sua descendência e alerta prudente:

- Não podemos matar nosso irmão. E aponta:

- Vejam aquela nuvem de poeira, é bando ismaelita. Rastejam como serpente. É gente vil que venderia a própria mãe, comprarão José. Deixemos que levem essa praga para mais longe. Que os sonhos de José sejam ervas daninhas entre os filhos de Ismael. Nossas mãos estarão limpas. E assim foi.

A TERCEIRA MORTE DE JOSÉ - Morte terrível José terá. Discorda a voz rouca de Simeão.

- Daremos a ele tempo para sonhar. José morrerá seco naquele velho poço que há muito deixou de matar nossa sede. Terá o sol para si até o fim dos seus dias. Aquele que secou os peitos que o alimentaram, agora alimentará os vermes com seu corpo. E não se fala mais nenhuma palavra.

E assim foi.

A QUARTA MORTE DE JOSÉ - As lágrimas de Jacó sabem essa dor de cor, trariam o filho de volta se não caíssem minúsculas pedras nas areias do Hebron. O céu testemunha por nós, longe dali, enfiado na terra e nela posto nu como semente, José sonha o mesmo sonho. Tudo cala no mesmo chão, o poço é o que seja seco, árido e raso e nos parece cova. A vida que poderia ter sido e não saberemos é a vida sonhada que tem mais graça, mais sabor do que essa até aqui inventada. Jacó não sabe que o filho dorme esquecido no fosso nesse instante do relato.

A DERRADEIRA MORTE DE JOSÉ - Um cabritinho magro esfola o focinho nas pedras à procura de não sei quê. Insiste faminto e não vê outro animal que se aproxima sabendo bem o que quer. Animal, tão magra. Uma outra cabra. Aproxima deformada rasgando, na fuça quase humana, um riso medonho. O sorriso torna sua boca uma vala maior que a noite. Violenta, morde e arranca as entranhas do cabrito até não ter sobra nem sangue. Come e bebe satisfeita porque esquece a fome enquanto o sonho se recompõe sem concordância na mesma lógica.

Outra cabra se aproxima, tão mais.

Assim, todo o rebanho é devorado no sonho até que um da espécie se nos apresente pronto. Para o altar, a cabra sobrevivente caminha até o matadouro. O sangue escorre, alimenta a nação de cabras magras. O vermelho desce para o Rio. Outros janeiros, futuros pais obedecem a ordem não menos lógica do sonho. Pintam a porta de suas casas com o sangue do último pensamento desse rebanho sonhado para que a aurora continue derramando leite sobre essa via de rosas porquê a vida sonhada tem mais graça e sabor do que essa até aqui inventada. A realidade crua dói quando bate fundo no intelecto que é divisível e, por isso, dorme José esquecido no fosso esse instante que é relatado. O poço é o que é sendo seco, árido e raso: uma cova. Insepulto José antecipa o que virá, o que à luz será dado com a pungente força daquele que, uma vez prisioneiro, descobre a saída. Não acorde pois, José, de olhos fechados a vida continua sendo o milagre que se dá.

Uma cabra magra esfola o focinho nas pedras à procura de não sei quê. Insiste e não vê que outra vem sabendo o que quer. Tão magra, tão cabra. E, rasgando mais o riso que trazia torna a boca numa vala maior que a noite. Morde e arranca das entranhas até a sombra do seu semelhante. E bebe o sangue. Satisfeita esquece a fome enquanto o sonho se recompõe sem concordância e com a mesma lógica. Outra cabra se aproxima tão magra, tão cabra, tão mais. E assim todo o rebanho de sonhos guardados por José é devorado até que um único animal se nos apresenta pronto ao altar. É hora de fazermos o sacrifício. A cabra sobrevivente caminha por sua própria vontade até o matadouro e agora que seu sangue escorre alimenta toda a nação, filetes vermelhos descem como Nilo e cada pai obedece a ordem, não menos lógica por isso ser apenas sonho, de pintar a porta de suas casas com o sangue do último pensamento desse rebanho de cabras inventadas.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 23/10/2019
Reeditado em 27/01/2022
Código do texto: T6776948
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