A NOITE DE LUCAS BASHAR

Naquela noite o pequeno Lucas Bashar conheceu a dor, o medo e a coragem. O corpo de sua mãe ainda ardia nas chamas, e o espectro do mal iluminava o caminho para os passos do menino. Na chuva daquela madrugada, Lucas seguiu sua intuição sem chorar. Sem esperar que a polícia ou o conselho tutelar viessem atrás dele.

As lentes dos óculos embaçadas eram telas de cristal líquido, ali o Mal projetou o filme que agora assistimos.

A tia Odete assumiu a guarda do menino e a responsabilidade paciente de esperar que ele falasse alguma coisa. Que falasse qualquer coisa, uma palavra talvez. Os médicos disseram que o trauma lesionou uma parte do cérebro e que o menino não teria vida normal, inspirando ainda mais Odete aos cuidados.

As dificuldades da relação que assumia legalmente fariam de Odete uma heroína, as suspeitas que maculavam sua moral não incomodariam mais. Seu caso com o juiz, homem bem casado de carreira promissora, seria esquecido em breve. A vida tem que seguir um curso. Odete fez sua escolha, assumiu a guarda de Lucas Bashar, esse menino franzino que agora não diz uma palavra sequer. O que torna ainda mais difícil contar o que aconteceu naquela noite.

Bem, naquela madrugada, Lucas Bashar seguiu pontos de luz que o desviou da cidade. O tênis encharcado logo era barro. Os pés atolavam e, com dificuldade, chegou até o reflorestamento de eucaliptos. A carvoaria fica no meio da vegetação alinhada e produtiva. Todos pensam que está desativada, mas alguns homens trabalham na clandestinidade aqui. De tempos em tempos poderíamos surpreendê-los, mas não hoje. Lucas Bashar precisa de descanso, as paredes guardam calor suficiente, o menino dormiu profundamente.

Alongue os braços e abra sua mente, caro leitor. Caso contrário, descrever o que se passou dentro do forno seria trabalho inútil.

Lucas sentado abraça os joelhos dobrados, está dormindo de olhos abertos, vidrados na abertura por onde entramos. Do lado de fora ronda uma sombra na noite. O mal vem recrutar mais um bastião exemplar para suas trincheiras. A sombra se estende e penetra, enfia-se. Veste a alma do menino como se despisse pele antiga. Só poderíamos ouvir o gemido doce se estivéssemos presentes.

Lucas Bashar foi encontrado três dias depois. Deram-lhe banho, roupas limpas e canja para fortalecer.

Quando saiu do hospital, mudo e mais frágil que uma libélula, Odete levou-o para sua casa determinada à redenção de seus pecados. Tudo se deu como aqui se conta, o mal estabeleceu-se dentro da casa.

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 22/10/2019
Código do texto: T6776449
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