Pelas Ruas (outro)

Na solidão inencontrável da noite, alguém (um pândego, sem dúvida) desceu a rua num ritmo cadenciado que lembrava o tic-tac do seu relógio de criado-mudo assinalando, eternidade afora, o terrível tédio da sua rotina. A lua se refletiu no asfalto espectralmente, emprestando a tudo uma luz feérica que se manifestou de forma surreal, tipo um balé russo ou uma ópera de Verdi. Pequenos e inofensivos morcegos pularam de árvore em árvore, em seu vôo dinâmico. Nos prédios o selo do cotidiano imprimiu-se nas famílias envoltas com boletos, faturas, filhos, pipocas, namorados, novelas, etc. Um teatro estrambótico. Voltando agora os holofotes para o nosso anônimo que desceu a rua, eis que ele, subitamente possuído por algum báquico transe, encenou seu próprio espetáculo público, declamou monólogos de densa solidão e filosofia, riu-se das aporias do mundo, modulou seu tom para uma comédia cada vez mais acentuada, e, nessa toada, e já que a lua predispunha a cidade com aquela diversidade de fenômenos, ele, após também manifestar diversos gêneros, ancorou-se numa comédia, uma comédia cada vez mais louca que então se sobressaiu a tudo, e riu-se muito, foi se abrindo num riso histérico, sua risada ecoou pela noite, para dentro das casas, dos bares, dos apartamentos, das farmácias, provocando uma onda endêmica de gargalhadas gerais. Ele continuou descendo a rua, e riu, riu, e todos riram por onde ele passou, porque todos entenderam o perfeito Absurdo, e até Deus riu-se também uma risada divinamente sarcástica, e o sujeito dobrou a rua, que, sob os aplausos das pedras, fechou as cortinas daquela comédia urbana que, cá pra nós, não tinha graça nenhuma.

Sarauvirtual
Enviado por Sarauvirtual em 22/10/2019
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