Pelas Ruas

Este texto e outros que publicarei aqui fazem parte de um livro a sair chamado Pelas Ruas, Microcontos Andantes, que tem como tema as ruas e seus encontros e desencontros, seus personagens, seus dramas e comédias.

A garota pára e atende ao celular no meio da rua. Parece nervosa, inquieta, e discute com seu interlocutor, provavelmente um namorado. Bruscamente, ela solta alguns impropérios, para, logo em seguida, tentar abafá-los com a mão na boca, como um criminoso esconde um cadáver. Depois, ela se vai rapidamente, e então, na esquina, finalmente está lá, materializado, o objeto de sua destempérie: um hipster barbado e deslocado. Ambos resistem por alguns segundos num olhar avassalador, até que finalmente se abraçam e se beijam, subsumindo tdos os antagonismos no afeto unificador, agudo como o baixo de um blues. Não tinham mais como resistir, ou não quiseram mesmo fazê-lo. Junto com os beijos sôfregos que estalam na noite há alguns tapas de menor intensidade vindos de ambas as partes, como se quisessem punir-se uns aos outros pelas desmedidas da paixão, e chamo aqui paixão a esse arrebatamento elétrico que aflora e derruba todos os pilares da nossa frágil racionalidade, deixando-nos vulneráveis, confusos e agoniados, ao mesmo tempo em que embevecidos, agraciados e coroados. Há então beijos ávidos entrecortados com tapinhas e abraços epilépticos, e, em seguida, ambos projetam-se na imensidão da noite, rindo e chutando latinhas vazias de Coca-Cola, como se não percebessem o extremo perigo que os espreita e os enormes buracos empoçados da rua.

Sarauvirtual
Enviado por Sarauvirtual em 22/10/2019
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