A BAIANA - Cap. XVIII
A BAIANA
XVIII
Aproxima-se novo ano lectivo. Francisco e Elaine são os dois únicos estudantes de Tucano, que vão frequentar medicina em Salvador.
É preciso preparar com alguma antecedência a entrada na universidade. Alugar quarto, é de extrema importância. Há ainda outras formalidades a cumprir, mas de menos significado.
Francisco pensa encontrar-se com Elaine, para combinarem ida a Salvador e se inteirarem do que é mais urgente tratar. Acha que Josy não precisa de o acompanhar. O assunto é exclusivamente académico, segundo ele.
Nesta conformidade, Francisco foi a casa de Elaine para lhe falar da hipótese de irem os dois a Salvador conhecerem mais de perto a realidade.
Diálogo havido:
- Elaine, lembrei-me de te vir falar da possibilidade de irmos a Salvador tratar de assuntos ligados à universidade. As aulas estão à porta.
- Por acaso também já me tinha lembrado que é urgente começar a tratar de algumas coisas... Tinha pensado ir com os meus pais, mas como tu me vens convidar nem sei se aceite o teu convite.
- Íamos só os dois, mas tu é que sabes da tua parte. Não quero atrapalhar os teus planos.
- Não levas a Josy contigo? Olha que ela devia gostar de ir.
- Já fui com ela a Salvador duas vezes. Não precisa de andar sempre atrás de mim.
- Tu é que sabes. Eu não via mal nenhum que ela fosse. Faz-lhe o convite. Se ela não quiser ir, tudo bem. Olha que me parece que é muito ciumenta.
- Não convido nada. Se é ciumenta que não seja.
- Depois vem a saber e frita-te a mioleira.
- Quero lá saber. Depois explico-lhe porque não a levei.
- Vais-te meter numa… Ainda vai sobrar para mim.
- Não. Tu não tens nada a ver com a minha decisão.
- Ai isso não. Pelo contrário. Até te estou a avisar.
- Deixa comigo.
Feito o convite, Elaine ficou de lhe dar uma resposta. Disse que ia falar com os pais. Que lhe telefonasse ou aparecesse pessoalmente amanhã, que já tinha resposta para dar.
Assim foi. Francisco fez questão de ir pessoalmente saber da resposta.
- Olá Elaine, que tens então para me dizer?
- Falei com os meus pais, eles também querem ir. Dizem que querem ver o alojamento para alugar e que até já o poderão alugar. Quanto mais cedo melhor. Lá mais para o fim não haverá nada de jeito.
- Ok.
- Se quiseres vir connosco, podes. Há lugar para duas pessoas no carro. Até podes levar a Josy.
- Quando estás a pensar ir?
- Ainda não falamos em datas, mas talvez no próximo sábado. Que achas?
- Não dizes mal. Eu ainda antes, fico de te dizer alguma coisa.
- Está bem. Pensa e depois avisa pelo telefone ou pessoalmente, ok?
Francisco irá pensar melhor a maneira de ir a Salvador. Certo é que não lhe apetece levar consigo Josy. Não se sabe o que o levará a pensar assim. Se para se sentir mais livre de movimentos, se para evitar cenas iguais àquelas da esplanada do Bar Juventude, em que Josy se mostrou ciumenta em matéria de pueris conversas.
Certo certo, é que os pais de Francisco não querem ir e delegam nele autonomia para se decidir sobre o alojamento que terá de alugar. Ele não quer ir para uma residência universitária, prefere alugar quarto, nem que seja mais pequeno, mas que tenha uma privacidade total de entrar e sair quando quiser.
Quanto a levar Josy ou não, vai-se decidir por não a levar. Pensa que se tiver que ouvir alguma coisa dela, não o ouve diante de pessoas “finas”, que o constrangeria. Entre dois males, escolheu aquele que lhe pareceu ser o menor.
Francisco acaba por aceitar a ida a Salvador na companhia de Elaine e pais. Foi-lhe dar conhecimento da decisão e acertar a hora da saída.
Diálogo havido:
- Elaine, já decidi. Se então eu puder ir convosco, aceito a vossa simpatia.
- Podes ir. Traz a Josy.
- Falei com ela, diz que não quer ir. Que é assunto de estudantes.
- Tá bem. De contrário podias ter problemas.
- Ela percebeu. Também disse que não se sentia muito à vontade para ir e que o carro assim iria cheio demais.
- Então sábado, pelas dez horas da manhã, lá vamos. Também pensas alugar alojamento?
- Sim, sábado cá estarei à hora marcada. Também levo a ideia de arranjar alojamento. Não me quero guardar para muito tarde.
- Fazes bem. Os meus pais vão ficar contentes por saber que eu vou ter um colega da terra. Se quiseres, eles também te podem ajudar a escolher quarto.
- Obrigado. Depois lá no sítio, vemos isso.
Ainda antes da hora combinada, Francisco apareceu junto da casa de Elaine e esperou que ela o visse. À distância, Elaine cumprimentou-o com um aceno de mão. Foi para dentro, avisou os pais da presença de Francisco, para que se não demorassem. Entretanto veio junto do portão de entrada e mandou-o entrar, tendo-se cumprimentado com beijo. Inicia-se uma cada vez maior relação de amizade e companheirismo, que se havia interrompido durante a vida académica no ensino secundário e que a universidade irá trazer de volta.
Os pais de Elaine já não conheciam Francisco, já não o viam há anos, desde que na instrução primária frequentavam a mesma escola. Dos dez aos dezassete anos fez-se uma diferença muito grande no desenvolvimento físico, intelectual e de personalidade do filho do alfaiate.
Numa primeira impressão, o Dr. Jesualdo e esposa, D. Francelina, acharam que Francisco poderá ser uma boa companhia para a filha, em Salvador. Ela não estará tão desamparada. Se precisar de alguma coisa, tem nele um amigo a quem possa socorrer. É sempre bom para eles, pais, sentirem-se tranquilos. A Elaine foi uma menina criada muito junto aos pais, entre a casa e o consultório médico e a companhia de Alice, a empregada. Nunca criou grandes amizades. O seu mundo era diferente. Só agora é que vai ser lançada num grande meio, sem conhecer ninguém e sem ter hábitos de familiaridade, de realizações afectivas. Os pais andavam algo preocupados, mas agora que conheceram Francisco, e sabendo as suas origens, revelaram-se incondicionalmente calmos, serenos e seguros do êxito na integração de Elaine, num meio tão grande. Acham até que poderão ser úteis um ao outro. Que Francisco, eventualmente poderá também vir a precisar do apoio de Elaine. A complementaridade de interesses, entre ambos, poderá ser a melhor forma para levar por diante as saudades dos primeiros tempos, que a ausência certamente irá provocar, quer num quer noutro. Adivinha-se que os pais de Elaine, venham a estimular esta relação, como medida de auto defesa da filha.
Fizeram-se à estrada, em direcção a Salvador. No banco traseiro sobrou um lugar que seria para Josy, se Francisco a tivesse convidado. Este não o quis. Elaine sente-se interiormente insatisfeita com essa ausência.
Pelo caminho o Dr. Jesualdo e esposa fizeram muitas perguntas a Francisco, que este respondeu com elevada e ponderada exposição, evidenciando muito calculismo e inteligência. Este “questionário” funcionava como medida de conhecimento mais aprofundado, da personalidade de Francisco, que este também percebeu, mas a que veladamente respondia com linguagem rica de conteúdo e vocabulário fácil. Francisco esmerou-se e tudo lhe fluía positivamente. No Dr. Jesualdo e esposa, a impressão colhida foi muito para além do mais expectante.
Foi depois passada a palavra para trás, para que pudessem apreciar a conversa entre ambos os jovens.
Sem dúvida que foi um hino ao bem falar e expor por parte de Francisco. Este era claramente superior a Elaine.
Chegados a Salvador, procuraram restaurante para almoçar, no centro histórico da cidade, onde melhor e mais profundamente se vêem marcas da colonização portuguesa. Dirigiram-se à parte Alta da cidade e entraram num restaurante de comida portuguesa, no bairro do Pelourinho. O Dr. Jesualdo achou por bem recriar um cenário mais consentâneo com a zona envolvente e do cardápio escolheu para todos, depois de ouvido Francisco, bacalhau gratinado com camarões graúdos e queijo catupiry. Para beber mandou vir um vinho também português, da quinta do Esporão, que ele e a esposa saborearam a preceito. Os jovens beberam água. À sobremesa comeram pastéis de Belém e ovos-moles de Aveiro. Por fim veio café para todos e um descafeinado para a D. Francelina. O Dr. Jesualdo bebeu um Porto vintage.
Findo o repasto, o Dr. chamou o empregado, pediu a conta e pagou toda a despesa. Em média 60 reais por cabeça. Francisco esboçou vontade de pagar a sua parte mas percebeu que a vontade do pai de Elaine era superior, como superiores eram os argumentos financeiros. Delicadamente, disse-lhe a D. Francelina, que para a próxima pagaria ele.
Para Francisco foi um momento inesperado. Nunca tinha entrado em restaurante tão luxuoso. Achava que se tivesse vindo só, não era ali que iria almoçar, o rendimento do pai não lhe permitiria essa extravagância. Ainda antes de saber qual seria o desfecho do pagamento, dava-se a pensar na elevada conta que iria pagar e que mitigava na poupança feita com a viagem, que lhe cobriria a despesa. Percebeu que não poderia dar parte fraca. Alinhou sem constrangimento evidente, embora por dentro pensasse que era um desperdício tamanho gasto. Pensava que àquela hora os pais estariam a comer uma sopa e pouco mais. A D. Francelina durante o almoço falou muito pouco. Colocou-se mais na posição de observadora atenta e cuidada. Chegou a pensar bem no seu interior, que o rapaz era interessante sob todos os aspectos e que eventualmente até poderia vir a servir para a filha. Pena, dizia ela, o seu maior “defeito” é ser pobre.
Após o almoço, o Dr. Jesualdo e esposa entenderam ser melhor procurar alojamento para alugar e só depois é que tranquilamente e no tempo sobrante dariam um passeio no centro histórico, com visitas pormenorizadas aos monumentos mais interessantes.
Dirigiram-se para as imediações da Faculdade de Medicina e procuraram alojamento. Repararam num dístico que dizia: Alugam-se quartos em apartamento, a meninas estudantes, telef….
A D. Francelina ligou para o número indicado, tendo sido atendidos do outro lado da linha, por uma senhora que lhes disse que dentro de cinco minutos estaria junto desse local, para lhes mostrar o apartamento.
Assim foi. A senhora encarregada de mostrar e tratar dos assuntos relacionados com o aluguer, era a D. Eufrásia, uma senhora negra, ainda na casa dos quarenta anos, muito gorda e que após os cumprimentos, lhes foi mostrar o apartamento. Era um imóvel já com mais de trinta anos, mas muito estimado, que cada ano recebia uma repintura interior, para conservação e preservação de bom aspecto. A D. Eufrásia falou-lhes do preço de cada quarto, sendo que o maior, que está virado a nascente, era mais caro.
Depois de informados os preços, a D. Francelina, marido e Elaine, afastaram-se para conversar a sós e acharam melhor alugar o apartamento completo, porque também lhes permitiriam passar fins-de-semana com a filha, sempre que quisessem, evitando-lhe caminhadas semanais de ida e volta a Tucano. O Dr. Jesualdo pagou adiantados dois meses de aluguer, com a certeza de verem a filha instalada num apartamento independente, sem outras companhias, que nunca se saberiam ser de bom relacionamento ou conflituoso.
A questão do alojamento de Elaine ficou resolvido. Há que colaborar com Francisco na procura de alojamento para ele. Perguntaram à D. Eufrásia se conhecia da confiança dela, alguém que tivesse quartos para alugar, ao que esta respondeu ter uma cunhada que costuma alugar um quarto da sua própria casa de habitação, a estudantes rapazes, muito perto também da faculdade. Disse até que se quisessem, ela ia lá com eles, ao que acederam prontamente.
Seguiram a pé dez a quinze minutos em passo vagaroso, enquanto escutavam de D. Eufrásia, histórias de vidas difíceis.
Chegados ao local chamou pela cunhada D. Vitória e apresentou-lhes os senhores e disse-lhe ao que iam
D. Vitória pediu uns segundos, foi dentro dar um jeito na aparência e voltou já com muito melhor aspecto. Mandou-os entrar e disse-lhes que não reparassem em alguma coisa menos arrumada. O quarto para alugar era aquele que foi dela durante muitos anos, até que a viuvez chegou. Diga-se um bom quarto, airoso, soalheiro, espaçoso e muito limpo.
D. Vitória falou do preço e Francisco aceitou as condições, desde que ela lhe aceite o envio por correio, de cheque para pagamento, uma vez que não tinha vindo prevenido com dinheiro suficiente. Elaine estava junto de Francisco, ouviu-lhe a resposta e discretamente afastou-se e falou ao pai desse pormenor. O Dr. Jesualdo disponibilizou-se para sinalizar o quarto e fez até questão de que assim fosse. Perante os argumentos do pai de Elaine, Francisco acabou por aceitar a deferência.
Acabada que está a canseira do aluguer de alojamento dos jovens estudantes e porque ainda há uma horas para ocupar o tempo, até se fazer o regresso a Tucano, acordaram dar o tal passeio pelo centro histórico.
Iniciaram-no pela Cidade Alta, precisamente no coração do centro histórico, onde se encontram os edifícios mais importantes e de mais memória. Percorreram os bairros do Pelourinho, Terreiro de Jesus e Anchieta.Visitaram a Catedral da Baía na Praça da Sé, considerado o templo mais bonito e majestoso de Salvador, de estilo barroco português, onde em tempos funcionou a Escola Jesuíta, tendo-lhe apreciado as suas colunas e imagens de santos. Ao lado visitaram o Museu Afro-Brasileiro, onde funcionou em tempos a Faculdade de Medicina. Muito perto daí fica a igreja de S. Francisco, que D. Francelina fez questão de fotografar, tendo juntado Francisco e Elaine em foto para a posteridade.
Esta foto fez sentir um arrepio na pele a Francisco, porque lhe lembrou a última foto ali tirada na companhia de Josy. A D. Francelina achou por graça tira-la, mas foi adiantando que Francisco não lhe pareceu que irá ficar muito bem na foto, tendo-lhe até perguntado se estava nervoso por a igreja também ter o nome dele. A Igreja de S. Pedro dos Clérigos teve uma passagem mais rápida na visita. O Bairro do Pelourinho encerra muita história colonial. Era aqui que os escravos eram torturados e vendidos ao melhor benfeitor. Aqui foi também vista com redobrado interesse a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída pelos escravos no século XVIII e que contém excelentes azulejos, bem como a Casa da Cultura, local de transacção dos mesmos.
Findo este roteiro turístico pelo mais emblemático local de Salvador, sentaram-se na esplanada da sorveteria A Cubana e lancharam. Francisco fez questão de ser ele a encabeçar esta iniciativa. A família Jesualdo aceitou e compreendeu o gesto. Ele marcava pontos na admiração de D. Francelina. Comeram-se bolos, fatias de pizza, beberam-se sumos e colas. Francisco pagou com um brilho de olhos que evidenciava satisfação.
Depois foi o regresso a Tucano, mas ainda antes, ao passar à Pizzaria Don Rafaello, Francisco comprou duas pizzas das grandes, para levar, sendo que uma é para Josy.
A viagem decorreu sem problemas de qualquer espécie e agora com um Francisco mais solto, com iniciativa para falar e até para fazer perguntas. Chegados a Tucano, despediram-se com um até breve, tendo a mãe de Elaine dito a Francisco para aparecer por ali sempre que quisesse. Trocaram-se beijos e um abraço do Dr. Jesualdo.
Elaine só entrou para casa depois de o ver desaparecer na curva ao fundo, com uma embalagem de pizza em cada mão.