O Impessoal

Bem, antes de tudo gostaria de esclarecer que essa história não é sobre mim, e sim sobre a dúvida que me ocorreu há certo tempo atrás, e que somente agora lhes contarei, pois não aguentava mais ficar calado. Mais precisamente, essa dúvida me sobreveio pela primeira vez há 20 anos e não pensei que iria me atormentar pelo resto da vida.

“Isso é um desabafo? ’’, você me pergunta. Se for, qual o problema? Cientistas não podem desabafar? Apesar de tudo que fiz e conquistei, sou humano. Eu possuo uma alma, eu acho. Sem mais delongas, vamos para o ocorrido.

Era mais uma semana que começava, uma segunda-feira (engraçado que as piores coisas ocorrem nas segundas). Estava nevando lá fora, pude perceber ao olhar pela janela da minha casa. Acordei com o meu despertador-cama vibrando. Na verdade, não tem como não acordar se você possui um desses, a menos que esteja morto, que não era o meu caso. Vi as horas: 04hrs30min. Acordei desnorteado, desliguei o despertador e fiquei sentado na cama, pensando no que fazer. Levantei de repente com um salto, pois me veio à mente que hoje eu iria palestrar em Oxford sobre “A Experiência De Viajar No Tempo’’. A palestra era daqui algumas horas e eu precisava programar meu tele transporte para me levar até Londres. Enquanto isso fui à cozinha receber o meu café já pronto sem fazer barulho, pois não queria acordar minha esposa. Comi algo simples, para não perder hora: um pão na chapa com café forte, para me animar naquele dia gélido em São Petersburgo.

Foi então que me ocorreu a dúvida cruel. Na verdade, não foi naquele exato momento, e sim um tempo mais tarde, naqueles momentos matinais em que você obedece ao chamado da natureza. Lá estava eu, fazendo o que tinha que fazer, quando veio a dúvida mais elaborada de toda minha vida: “Quem sou eu? ’’. Simples e complexa ao mesmo tempo, ela me veio. Como um tapa na cara, e cá entre nós, odeio tapas na cara, pois apanhei muito da minha mãe, porém agradeço a ela, pois se estou aonde estou, é graças a ela. A princípio achei essa pergunta medíocre, como todas as outras que já me ocorreram e que consegui responder facilmente. “Com certeza esse seria mais um caso’’, pensei comigo mesmo. “Oras, eu sou Mikail Plastinovich, renomado cientista reconhecido mundialmente por meus grandes feitos. Esse sou eu. ’’, respondi. Logo então sai do banheiro, vesti meu terno, peguei meus documentos e fui rumo a Londres, pensando que eu tinha respondido à essa pergunta. Grande engano o meu.

- Ótima palestra, Prof. Plastinovich. Esclareceu todas as minhas dúvidas sobre viagem no tempo. Agora posso continuar com meus experimentos. O senhor é um gênio! – Falou um dos alunos presentes no auditório.

Eu já estava acostumado com todos esses elogios. Todos os cantos que eu ia era assim. Na maioria dos casos eu me impressionava mesmo era com a arquitetura dos locais que eu palestrava. Tudo bem que aquela fora a 4° ou 5° vez que fui palestrar em Oxford, mas eu sempre me impressionava com aquele auditório, que, mesmo construído há 30 anos atrás, parecia novinho em folha. Sua arquitetura me impressionava, com seu formato de abóbada que fazia com que A Basílica De São Pedro, na Itália, fosse um projeto de mal gosto. Elogios ali e aqui, veio ao meu encontro uma colega de profissão, a Dra. McKagan, muito competente e inteligente, diga-se de passagem. Fora ela quem me ajudou a desenvolver as técnicas de viagens interplanetárias na velocidade da luz.

- Novamente, você deixou todos presentes espantados com tanta sabedoria. – Disse ela alegre e cumprimentando-me com um abraço.

- Apenas faço meu dever, que é proporcionar conhecimento a todos na medida do possível, e com certeza devo muita coisa a você, minha querida colega.

- Quanta gentileza sua. Aliás, poderíamos sair para jantar essa noite. Aproveitar essa linda cidade e seu sucesso. Que tal?

- Eu gostaria, porém tenho alguns trabalhos a fazer. Além disso, estou com uma dor nas costas impossível e tenho outra palestra de noite. Nem sei como consegui vir hoje. Foi um milagre. Se não se importar, podemos jantar em outra ocasião.

De fato, eu estava com as costas doendo e cheio de trabalho para fazer. Não estava evitando-a. Eu gostava dela, porém só a via como uma amiga, uma grande amiga que me ajudou em muito. Nos tempos do meu avô se diria que eu estaria colocando-a em uma “friendzone’’. Acho um termo besta, e uma perca de tempo pensar nisso.

- Ok então. – Disse ela com aparente desapontamento. – Fica para a próxima. Melhoras para você.

Neste exato momento, me veio novamente aquela pergunta, e dessa vez mais forte e, de um certo modo, mais irritante do que naquela manhã: “Quem sou eu? ’’. Eu já tinha respondido. Não havia o porquê de ela voltar em minha mente. Eu sabia quem eu era, ou achava que sabia. Tentei colocar meus pensamentos em outras coisas, como por exemplo no fato de que os Ingleses possuem um péssimo gosto musical e que são ruins em hockey no gelo. E então a pergunta se evaporou novamente, “para nunca mais voltar”, pensei. Novamente, outro engano meu.

À noite, voltei para palestrar sobre o mesmo assunto da manhã. Novamente o auditório estava lotado, creio que com umas 50 mil pessoas. Era um mar de gente. Rostos em sua maioria juvenis me encarando e olhando com a esperança de que eu possuía a verdade e todo o conhecimento do mundo, como se eu fosse um Messias ou algo do tipo. No fundo eu me sentia como um Messias. Eu era popular, possuía vários prêmios e Nobels. Eu tenho moral e gabarito no que digo. Passava confiança e esperança a todos que me ouviam. Tudo corria bem para mim, ou quase tudo.

Então no meio da palestra, pela terceira vez, me veio a fatídica pergunta, mas dessa vez pior do que antes. Me veio tão avassaladora que me deu dor de cabeça, e eu não conseguia raciocinar. Não podia me concentrar no que eu estava dizendo. Não conseguia pensar em nada, a não ser em uma coisa: “Quem sou eu? “ . Eu estava sendo bombardeado por essa dúvida de uma forma tão cruel que parecia que minha cabeça ia explodir. “Como eu não consigo responder a essa simples pergunta? Eu sei de tudo! Deve haver uma resposta, e eu vou encontra-la”. Porém, minha cabeça doía e quando percebi, eu estava parado em cima do palco, diante das 50 mil pessoas, sem dizer nada. Todos me olhavam, intrigados e confusos. Me despertando para a realidade, pedi um copo d’água, e tentei prosseguir com a palestra, aos trancos e barrancos.

“Que dúvida é essa? O que está acontecendo comigo? Não há nada que eu não saiba! Eu sei quem sou e vou provar que sei. ”, pensei comigo mesmo durante toda a palestra. Mesmo assim, com a mente em outro lugar, consegui terminar.

Tempo depois, veio até mim um dos professores de Oxford, o Dr.McBrain. Ele me parabenizou pela palestra, porém não deixou de perguntar sobre meu devaneio no meio da explicação.

- O que houve com você durante a explicação, Mikail? Parecia transtornado com algo. Na verdade, ainda parece. Você está bem?

- Sim sim, eu estou bem. Foi só uma pequena dor de cabeça que me atingiu. Deve ser o cansaço. Uma boa noite de sono e tudo estará resolvido. Aprecio sua preocupação, mas está tudo bem comigo.

- Neste caso, desejo melhoras a você. Aliás, você está precisando de férias. Desde sua última descoberta, você vem trabalhando feito um louco! Existe uma ótima praia no México, que vou todo ano descansar. Precisamos ir lá. Eu, você e sua esposa, que tal?

- É uma boa ideia. Quem sabe em breve nós façamos isso. Por hora preciso apenas descansar. Bem, até breve, Dr. McBrain. Preciso arrumar minhas coisas e pegar meu tele transporte de volta pra Rússia.

- Se cuide, amigo. Você não é novo, muito menos eu. – Se despediu rindo.

Então arrumei minhas coisas e peguei meu tele transporte rumo a minha casa. Durante a viagem só conseguia pensar no fato de que talvez, no fundo, eu não sabia quem eu era. Talvez eu nunca soube quem eu era, e isso me assustava. Eu precisava descobrir isso. Matar essa pergunta antes que ela me mate, e usaria todos os meios científicos possíveis para alcançar o meu objetivo, custasse o que custasse.

Por sorte, naquela semana eu não iria palestrar mais. Ficaria em casa trabalhando em meu novo projeto. Na verdade, era o que deveria ser, porém passei o tempo tentando achar a fatídica resposta da cruel pergunta: “Quem sou eu? “. Foi então que descobri algo trágico, que carrego desde então.

Tentei de todas as formas. Todos os métodos empíricos e racionais. Até dogmáticos. Porém nada, nada me fez chegar próximo do meu objetivo. Formulas infinitas, contas gigantescas, testes intermináveis. Nada me ajudou. Tive que apelar até para conselhos e opiniões. E todos respondiam a mesma coisa. “Você é o maior cientista de todos os tempos”. Mas essa não era a resposta. Nunca foi. E isso só me desesperava mais e mais, à medida que o tempo passava. Percebi que pela primeira vez na vida eu não saberia a resposta de algo, e isso me colocou em profunda tristeza e depressão, a ponto de quase me suicidar.

Minha esposa, vendo todo meu sofrimento, perguntou o que eu tinha.

- Eu não sei quem sou. – Respondi chorando copiosamente, em cima dos meus experimentos.

- Ora, meu querido, você é o amor da minha vida e o maior cientista de todos. – Respondeu, com alegria.

Até ela! Até ela disse o que todos disseram. Parecia um robô. (De fato ela era, pois fui eu que a criei para ter a função de esposa, me esquecera por um momento). Eu não aguentava mais. Essa pergunta me pressionava de uma forma como nunca. Conclui que eu devia desprogramar minha esposa, pois ela só me atrapalhava. Conclui que esposas não prestam, ainda mais esposas-robôs. Não que eu prestasse. Apenas sou mais um corpo no universo, ocupando espaço. E tudo isso, há 20 anos atrás.

Hoje, depois disso tudo, encontro-me aliviado. Talvez porque esteja perto da morte, ou porque, nesses 20 anos que se passaram, eu me acostumei com essa dúvida, esse dilema de quem eu sou. Essa dúvida me fez passar apuros e momentos terríveis como nunca passei. Nem mesmo quando não consegui criar a pílula da imortalidade ou ressuscitar pessoas fiquei tão frustrado e triste como fiquei com essa dúvida na mente por 20 anos. Mas é aquela velha história: Não se evita o inevitável. Onde há morte, sempre haverá morte.

Hoje, com 98 anos de idade, eu, Mikail Plastinovich, descobri que não sei de tudo. Sei apenas o necessário. Sei que todos os meus prêmios, Nobels, conquistas e descobertas, que ajudaram a toda humanidade, de nada valeram para me ajudar. Me encontro só, apenas eu e minha dúvida, neste leito de morte, nessa porcaria de cidade em que vivo. Certa vez, o meu mestre científico, o grande Prof° Knolevich, o qual devo muita coisa, ou quase tudo, me falou o seguinte: “Não se deve fazer perguntas sobre o que não quer saber as respostas”. A princípio, achei estranha a frase e discordei veemente. Três dias depois, ele morreria de depressão. Hoje em dia, eu entendo o que ele quis dizer, e até concordo. Realmente, existem certas coisas que não se devem perguntar.

Não estou desestimulando o conhecimento. É que com grandes poderes, vem grandes responsabilidades, e desejo o melhor a vocês. De fato, o conhecimento liberta, mas nem todos se dão bem com a liberdade. Em todos esses anos, descobri tudo, mas não descobri quem eu sou. Sou o que dizem, sou o que penso, ou sou o que sou? No final, tudo se volta para a pergunta inicial: Quem eu sou?

29/03/2016

Inhasz
Enviado por Inhasz em 30/06/2019
Reeditado em 30/06/2019
Código do texto: T6685141
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.