A BAIANA -Cap. XII

A BAIANA

XII

O namoro Josy/Francisco continuava pegado e recomendava-se como referência aos jovens dessa idade.

Francisco vivia o namoro de modo discreto. Nada que se pudesse parecer com aquele que Romeu viveria. Duas personalidades diferentes, muito diferentes.

Francisco, era em tudo, muito racional. A sua inteligência era apreciada em Tucano. Na escola foi sempre o melhor aluno, passava de ano com distinção e menção honrosa.

Romeu, pelo contrário foi sempre mau aluno, desinteressado, sobretudo desinteressado. Tinha inteligência média. A trapeira era a sua perdição.

A trapeira era uma bola feita de trapos, que se metiam dentro de uma meia, com a qual os meninos pobres jogavam.

Francisco tem um largo futuro pela frente. A medicina irá fazer dele um homem respeitado em Tucano. Nasceu de família pobre, unida e em ambiente de amor.

Romeu, não teve a sorte da vida pelo seu lado. Perdeu a mãe, de quem tanto gostava, aos seis anos. O pai esforçado sapateiro de profissão, com quatro filhos, todos pequenos para criar, viveu com miséria envergonhada debaixo do seu miserável tecto. Deitavam-se muitas vezes sem jantar. Ao almoço comiam meia sardinha cada. Era assim todos os dias. Sopa, pão e meia sardinha.

Ainda assim, Romeu seria um rapaz feliz, não fosse Josy o ter preterido. O futebol poderá, se a sua cabeça ajudar, a ser a tábua de salvação de toda uma família. Com o pai viúvo e a viver de trabalho mal remunerado e muitas vezes sem receber, a vida irá arrastar-se com muita dificuldade.

Calixto, homem com bom coração, já fez por ele mais que todo o Tucano. A paróquia ainda não mexeu uma palha por aquela pobre e humilde família. Veremos o que está guardado no futuro para este promissor jogador de futebol, que recentemente foi a alegria de todos.

A sociedade é ingrata, não se lembra daqueles que carecem de bens materiais ou das várias outras necessidades que fazem no seu todo, o homem feliz e bom. Fazem falta muitos Calixtos, que apelem aos corações bons, a quem falta o clic da bondade. Fazem falta mais padarias do Ambrósio, Talhos Boi do Povo a quem Calixto com humildade pediu apoio alimentar. Até o Cristóvão barbeiro também se prontificou a cortar o cabelo a Romeu. Bem hajam.

Romeu continua a frequentar a biblioteca para transcrever poemas para enviar á jovem dos seus sonhos. Desses poemas que Romeu avidamente lê, escolheu este que irá meter na caixa do correio.

SEM TITULO

Não sei o que há de vago,

De incoercível, puro,

No voo em que divago

À tua busca, amor!

No voo em que procuro

O bálsamo, o aroma,

Que se uma forma toma,

É de impalpável flor!

Oh, como te eu aspiro

Na ventania agreste!

Oh, como te eu admiro

Nas solidões do mar!

Quando o azul-celeste

Descansa nessas águas,

Como nas minhas mágoas

Descansa o teu olhar!

Que pálida harmonia

Então a pouco e pouco

Me eleva a fantasia

A novas regiões…

Dando-me ao uivo rouco

Do mar nessas cavernas

O timbre das mais ternas

E pias orações!

Parece-me este mundo

Todo um imenso templo!

O mar já não tem fundo

E não tem fundo o céu!

E em tudo o que contemplo,

O que diviso em tudo,

És tu… esse olhar mudo…

O mundo és tu … e eu!

Romeu está feliz. Estes poemas trazem-no apaixonado sem possuir a mulher amada. A terapia do Sr. Dr. Jesualdo está a resultar em cheio. Romeu já não se evade da sociedade. Pelo contrário, participa em actividades lúdicas e lazer. Agora também vai até ao Centro de Dia da Terceira Idade, ajudar as pessoas idosas nas suas dificuldades de locomoção. Empurra as cadeiras de rodas, leva os velhinhos ás casas de banho, calça-lhes os sapatos, ou descalça consoante as necessidades, mete-lhes de comer, fala com eles e acaricia as velhinhas a quem elas tratam de “Meuzinho”.

Vai feliz.

A D. Margaridinha, responsável pelo Centro, também teve tacto, para aceitar os préstimos do jovem, que timidamente, um dia se foi oferecer para colaborar em pequenas actividades.

Romeu crescia interiormente. Uma luz começava a iluminar-lhe alma. Ele ganhou coragem para enfrentar aquela dura realidade de amor não correspondido, entregando-se ao bem público. E sentiu que podia ser feliz, mesmo não tendo aquilo que gostaria.

“Valente” Romeu.

Josy continua aquela moça jovial, prazenteira, vivaça. O coração dá-lhe felicidade. Não tem ressentimentos com ele, bem pelo contrário. Sabe que além de Francisco, alguém mais a admira. O seu ego está de boa saúde e recomenda-se.

Contudo o enigma das poesias, trá-la com um desejo de descoberta do seu autor. Tem absoluta necessidade de saber quem é, porque lhe quer agradecer com um olhar de estima e gratidão. Nada mais que isso.

Ela sabe que a tarefa é difícil, e sabe também que por exclusão o Francisco não foi, já o confessou e sabe também, que embora Romeu lhe tivesse e tem apreço, nunca o poderia ser, visto segundo ela, mal sabe escrever.

As poesias são tão bonitas que se Francisco não é capaz e vai ser médico, Romeu…

Ah, mas hei-de arranjar estratégia de poder chegar à descoberta. Para tanto vou passar a olhar mais fixamente para alguns moços que eu suspeito, e pelo olhar que receber, tirarei as minhas conclusões. A partir dai, o primeiro passo estará dado e depois é só acompanhar discretamente os passos desses suspeitos, sempre que passem à minha porta. Vou apanhar o “João Ratão”. Dizia Josy para si.

Discreta discreta, era Elaine. Recebeu educação e ensinamentos que farão dela uma pessoa distinta no trato, afabilidade e sobretudo, um coração misericordioso.

Esta postura de vida já se evidenciava quando Elaine frequentava a escola do ensino básico, que ficava nas traseiras da Cadeia Concelhia e cujo terreiro de recreio ocupava o espaço entre a escola, a cadeia e os bombeiros.

A pequena Elaine fazia recados aos reclusos que vinham às grades, e faziam descer por um cordel, um saco plástico com dinheiro dentro e um papel escrito com o pedido a satisfazer. Normalmente pediam tabaco, jornais, sandes de queijo ou fiambre e cervejas.

Elaine fazia com gosto. Ela tinha muita pena dos reclusos e gostava de lhes perguntar porque estavam ali. Resta dizer que esses reclusos eram de pequeno delito. Muitos deles por terem roubado para comer.

Elaine chegava a estar inquieta durante o período de aulas e a professora, D. Camila, notava essa ansiedade e perguntava-lhe porque estava assim. Respondia que era por causa dos presos. Camila queria saber mais e Elaine disse-lhe que queria ir buscar o lanche e cigarros para eles.

Quando falava dos reclusos, quase sempre usava a palavra “coitados” a acompanhar.

D. Camila a partir dessa conversa, passou a ter a curiosidade de acompanhar com os olhos, os movimentos da pequenita Elaine, na hora do recreio e verificava que ela saía sempre a correr, em direcção à cadeia, esperando que a saca plástica descesse.

Feito o recado, regressava à escola feliz e o período a seguir ao intervalo era de melhor aproveitamento escolar.

Foi assim que D. Camila percebeu porque Elaine dava mais baixo rendimento no período antes do intervalo.

O pensamento dela estava nos “Coitados”.

Esta conduta “adulta” de vida era o reflexo do apreço que tinha pelo pai, Dr. Jesualdo, e que vinha do tempo em que, ainda antes da idade escolar, a pequena Elaine ia para o consultório passar tempo, junto de Alice, a empregada, de quem ela tanto gostava.

Apercebia-se que as pessoas pobres não pagavam consulta e ainda traziam medicamentos que o pai lhes dava, das amostragens que os delegados de informação médica levavam.

Estas atitudes eram muito bem “apanhadas” pela pequenita Elaine. Via com prazer, a satisfação que nas gentes pobres e eram muitas o gesto do pai nelas produzia.

O Dr. Jesualdo era parco de palavras, mas de coração enorme.

Passou para a filha uma mensagem, que Elaine porá em prática pela vida fora, como homenagem ao bom do seu pai.

Elaine também recebeu educação espiritual de um seu tio-avô, padre Bonifácio, que havia missionado em novo, no interior da Amazónia, no apoio aos Sem Terra e aos Índios, que teimavam em resistir ao genocídio.

Também ele uma pessoa muito boa e que amargamente falava do clero actual como não tendo referências cristãs e de intervenção social. Lamentava que só isoladamente e a título individual alguns clérigos se afirmassem como interventores das causas nobres.

Elaine cimentava a sua índole com base em boas referências, tanto do pai como do tio-avô, Bonifácio, que ela em pequena tratava por tio “Boni”.

Acabado o ensino básico na mesma escola que Francisco também frequentou, Elaine vai estudar num colégio particular de inspiração Cristã, enquanto Francisco frequentou o ensino público oficial.

Não mais se viram durante esse período de tempo.

O ensino secundário de ambos segue destino também diferente. Elaine vai estudar para Salvador, para se ambientar à grande cidade e onde depois seguirá medicina. Por sua vez, Francisco vai fazer o ensino pré-universitário em Euclides, também em escola pública oficial, dado que seus pais eram de pequenos rendimentos e orçamento resultante da actividade profissional do pai, como alfaiate, e que não permitiriam que Francisco também fosse estudar para Salvador, para se ir habituando à cidade, como no caso de Elaine.

Nesta idade, 18 anos Elaine, 17 Francisco, viam-se episodicamente, mas não se falavam. Parece que o facto de terem ido um para cada lado estudar, fizeram deles pessoas estranhas.

Um facto apenas aconteceu e que os pôs a falar, ainda que pouco tempo. Foi uma vez, na esplanada do Bar Juventude, quando Elaine interpelou Francisco acerca das matrículas na Faculdade.

Recorda-se que Francisco estava acompanhado de Josy nessa “célebre” conversa, em que esta se terá “incomodado” com aquele episódio inocente de perguntas e respostas, que os futuros médicos travaram.

Josy sem querer, trazia de quando em vez à lembrança esse encontro, mas nunca disse a Francisco o incómodo que lhe causava.

Talvez não tenha razões para pensar assim. Francisco é um moço que me inspira absoluta confiança, mas eu adoro-o e sem querer, tenho estes assomos de ciúme, dizia para si Josy.