ABAIANA - Cap. VII

A BAIANA

VII

Conforme prometido, Romeu foi cortar o cabelo à Barbearia Cristóvão. Quando chegou, estava na cadeira a cortar o cabelo, o Padre Lira e sentado a ler o jornal, Francisco, a aguardar vez.

Romeu quando entrou estremeceu todo. Não contava com semelhantes personagens. Ainda chegou a dizer ao Sr. Cristóvão que passaria noutra hora. Cristóvão disse que não, que esperasse, que afinal despachava tudo em pouco tempo. Por breves momentos imperou o silêncio, até que o Padre Lira quis saber coisas acerca de Romeu. Como ia o futebol, a saúde. Aproveitou para lhe dizer que já há muito que não o via pela igreja. Perguntou o que se passava com ele.

Romeu inicialmente encolheu-se, ganhou fôlego e falou com à vontade, iludindo o seu próprio nervosismo.

Francisco enterrou a cabeça no jornal, mal se lhe via a cara. A leitura já há muito tinha sido arrumada. Agora a sua atenção era para a conversa cruzada que andava no ar.

Cristóvão, homem experimentado em tirar nabos da púcara, virou-se para o Padre Lira e disse:

- Padre Lira, aqui o nosso craque da bola parece não andar bem. Ele tem coisa com ele.

- Deve ser da idade. É jovem. Muita energia pró-activa.

- A energia parece pouca. Só me queria nessa idade. Estes rapazes não sabem o bem que têm. A juventude. Ela, tão pouco tempo dura. Deviam aproveita-la bem.

- Cada um vive a juventude à sua maneira.

- Pois Sr. Padre, mas no meu tempo a juventude era mulheres, madrugadas, bebedeiras, para no dia seguinte fazer tudo de novo.

- E achavas isso bem?

- Mas aqui o Romeu, ou me engano muito ou ele anda de beiça. Alguma moça de quem gosta não lhe dá atenção.

- É isso ou não Romeu?

Romeu, antes de responder olhou para Francisco, tossiu e deu resposta.

- Oh. O que mais há, são mulheres. Porque haveria de andar chateado ou de beiça como diz Sr. Cristóvão?

Padre Lira ouviu e deu parabéns pela sensatez de Romeu.

-Isso mesmo Romeu. Não tenhas pressa.

Cristóvão estava com vontade de envenenar a conversa. Virou-se para Romeu e disse:

- Deixaste fugir para o Francisco a filha do Matos. Sorte a dela. Vai casar com um médico.

- Que seja feliz. Que boa oportunidade para estar calado, Sr. Cristóvão.

Francisco corroborou com ligeiro aceno de cabeça, as palavras de Romeu, levantando pela primeira vez a cabeça do jornal.

Inteligentemente, Romeu matou logo ali a puxada envenenada de Cristóvão.

- Desculpa. Isto é falar para não estar calado.

Padre Lira, escutou com atenção e apreço a resposta dada por Romeu. Acabado de cortar o cabelo, o Padre pagou, saudou os dois jovens e particularmente disse a Romeu que queria que ele aparecesse na residência paroquial para conversarem. Sem pressas. Quando lhe desse jeito. Despediu-se de todos. Foi ensinar a catequese às crianças.

A seguir, disse Cristóvão.

Francisco tomou lugar na cadeira, disse como queria o corte de cabelo. Cristóvão respeitou os gostos, mas ainda assim lembrou que sobre as orelhas deveria o corte ser menos pronunciado. Que ele tinha as orelhas grandes e que assim disfarçava melhor.

Francisco concordou.

Encontravam-se agora a sós e pela primeira vez os dois homens pretendentes à mesma mulher.

Cristóvão sabia desse pormenor.

- Oh rapazes, só me queria com a vossa idade. As moças de agora são mais bonitas que antigamente. No meu tempo nunca lhes víamos as pernas. Não usavam saias como agora, curtinhas, com as coxas à mostra. Calças justinhas, peito à mostra, com as maminhas a dar a dar. Vocês que mais querem? Até põe um homem maluco.

- Eh ou não Romeu e Dr. Francisco?

Francisco não fez comentários. Apenas se riu da forma como foi tratado. Romeu esboçou sorriso malandro de concordância e lembrou-se das coxas de Josy, bem torneadas e que aquele”guloso” que estava na cadeira bem poderia saborear. Um ciúme atravessou-o de lés a lés. A bonita e bem feita Josy seria para aquele orelhudo, que um dia vai ser médico. Oxalá, dizia ele, não me vá ainda rir da sorte dela.

Aqui na terra, dizia Cristóvão, há uma moça que tem tudo isso na perfeição. Vocês não sei se sabem a quem me refiro.

Francisco percebeu onde ele queria chegar. Ficou feliz pela apreciação mas ao mesmo tempo ciumento. Não gostou que a namorada fosse indiciada no comentário do barbeiro de modo pejorativo.

- Despache-se Sr. Cristóvão. Tenho pressa. Deixe essa conversa para outro dia.

- Desculpa. Não falta nada para acabar.

Ora aí está um corte bem feito para o nosso futuro médico. Já vais mais leve.

Francisco pagou e dali foi ter com a namorada.

Romeu tomou assento na cadeira para um corte à escovinha, com a máquina regulada no pente um. Corte rápido. Nem houve tempo para fazer conversa alguma. Dali iria até à biblioteca copiar uns poemas de João de Deus. O corte também já estava pago. Agradeceu, despediram-se com promessa de falarem noutra ocasião mais propícia. Tinha pressa de ir antes que fechasse.

Enquanto isso, o padre Lira tinha á sua espera a Sr.ª Maria do Tanque.

Que raio será que quer esta beata? Perguntava para si mesmo o padre.

- Boa tarde Sr.ª Maria, que a traz hoje cá?

- Boa tarde. A sua bênção Sr. Padre Lira. Ia a passar aqui por acaso, parei dois minutos a falar para as crianças e entretanto o Sr. Padre apareceu. Como gosto de falar consigo, olhe...

- Tá muito bem. Novidades?

- Ontem, quando vinha da padaria do Ambrósio, ao passar à porta da Micaela ouvi por acaso, uma conversa dela com a filha, a pequenita Otília. Elas falavam tão alto que eu tive de ouvir. Nem gosto destas coisas. A vida dos outros não me interessa nada.

- E que diziam de importante?

- Dizia a mãe para a filha: ainda te vou arranjar um pai.

- E que tem isso de importante? Ela é viúva. Foi uma maneira de dizer à filha que a mãe se quer casar. Nada mais. Acho bem. É muito nova. Se tem coração para amar e vocação para ser casada, deve fazê-lo.

- Foi um falar por falar, Sr. Padre.

- Certo. Vai-me desculpar... Já estou um pouco atrasado para a catequese.

- Até à próxima, Sr. Padre. Eu se souber de novidades…, conto-lhe.

Romeu dirigiu-se em passo ligeiro para a biblioteca. Levava na mente a transcrição de um poema de João de Deus, intitulado: AMOR

Pegou numa folha pautada de papel A4 e caneta, chegou-se para uma mesa de leitura mais isolada e começou a transcreve-lo. Notava-se felicidade nele. Em boa hora o Dr. Jesualdo o mandou ler. Rezava assim o poema:

AMOR

Não vês como eu sigo

Teus passos, não vês?

O cão do mendigo

Não é mais amigo

Do dono talvez!

Ao pé de uma fonte

No fundo de um vale,

No alto de um monte

Do vasto horizonte,

Sem ti estou mal!

Sem ti, olho e canso

De olhar, e que vi?

Os olhos que lanço,

Acharem descanso,

Só acham em ti!

Os ventos que empolam

A face do mar,

E as ondas que rolam

Na praia, consolam

Tamanho pesar?

As formas estranhas

De nuvens que vão

Roçando as montanhas

Em ondas tamanhas

Distraem-me? Não!

A pomba que abraça

No ar o seu par,

E a nuvem que passa,

Não tem essa graça

Que tens a andar!

Parece o pezinho,

De lindo que é,

Ligeiro e levinho

O de um passarinho

Voando de pé!

O rosto, há em torno

Da pálida oval,

Daquele contorno

Tão puro, o adorno

Da auréola imortal!

Não sei que luz vaga,

Mas íntima luz,

Que nunca se apaga,

Me inunda, me alaga,

Se os olhos te pus!

Eu amo-te, e sigo

Teus passos, bem vês!

O cão do mendigo

Não é mais amigo

Do dono talvez!

Depois de transcrito o poema, Romeu dobrou cuidadosamente a folha e meteu-a ao bolso com muito amor.

Fez o regresso a casa com desvio pela Rua Direita, dirigiu-se à Livraria Teófilo e pediu para tirar fotocópia.

Assim, depois de jantar e já com noite bem alta, passou à casa de Josy, e meteu na caixa do correio o original. Ficou ele com a fotocópia para ler e voltar a ler todas as noites.