A DEGOLA
Eram tempos de guerra, aquelas primeiras décadas do século XX. Eu contava menos de seis anos, ainda, mas já sentia os inconvenientes das restrições à liberdade que esses eventos impõem. Eu, meus irmãos e irmãs, e nossos amigos não podíamos nos distanciar de nossas casas para além das vistas dos maiores.
Rufino, um rapaz de dezesseis ou dezessete anos, que passava ventando por nossos terreiros, montando em pelo um magnífico bragado, que ele conduzia sem freio e sem rédeas, apenas com ternas palavras e tapinhas no pescoço, era o nosso modelo de liberdade. Descalço, com calças pelo meio das canelas, camisa de único botão e lenço vermelho no pescoço, a atestar sua condição de maragato, Rufino é talvez a definição para uma expressão muito própria dos gaúchos, quando anunciam que já vão partir: "deitar o cabelo".
A disparada velocíssima do bragado, em que seu corpo colava ao dorso do animal, ficando quase na horizontal, deitava bem rente ao crânio seus longos, loiros e lisos cabelos, cujas pontas esvoaçavam, frenéticas, atrás da cabeça, durante a corrida.
Ninguém das redondezas sabia acerca da família daquele moço. E sempre que o interrogavam sobre o assunto, desconversava muito habilmente, deixando todos na mesma. O certo é que passava com frequência por todas as estâncias da região. Vivia de pequenos serviços prestados nessas propriedades, especialmente em atividades de marcação e castração de bezerros, banhos no gado, com carrapaticida, e tosquia de ovelhas. Sozinho, com o auxílio de seu bragado, era capaz de reunir grandes rebanhos para essas atividades.
Esse perfil de Rufino fez-se necessário, para situar o episódio que presenciei, lá nos primeiros anos da minha existência, durante a famosa Revolução de 1923, e que ficou gravado nas minhas retinas e na minha alma, para o resto dos meus dias.
Certa feita, eu, um primo meu e o filho de doze anos de um vizinho logramos burlar a vigilância dos maiores e fomos passear no campo. Atravessamos um capão de mato, para fugir das vistas, e rumamos para a restinga que margeava uma sanga, onde pretendíamos pescar lambaris. De repente, avistamos um grupo de soldados, que se aproximava da restinga conduzindo um prisioneiro. Como ainda não fôramos notados, escondemo-nos atrás de umas macegas e ficamos a observar a cena.
À medida que o grupo aproximou-se, reconhecemos, atônitos, o prisioneiro: nosso herói Rufino! Os ximangos de Borges de Medeiros o haviam agarrado, ele que andava a trabalhar de estafeta para as tropas de Assis Brasil. Vimos que um dos soldados tapava a boca de Rufino com a mão. Este, porém, se debatia muito e, quando conseguia livrar-se daquela mão incômoda, gritava a plenos pulmões: Viva Assis Brasil! Vivam os maragatos!
Os três soldados que o conduziam bateram alternadamente nele. Levaram-no para a restinga, bem junto da sanga, deram-lhe uma pá e o mandaram cavar uma cova. Mas ele recusou-se a cumprir a tarefa. Então os soldados puseram-se ao trabalho. Quando o concluíram, empurraram o prisioneiro para dentro da cova e perguntaram qual era seu último pedido. Ele respondeu que tinha sede. Que lhe dessem água.
Um dos soldados foi até a sanga, encheu o capacete com água e o trouxe para o prisioneiro. Quando este já esticava os lábios para beber, outro soldado desferiu-lhe um golpe de adaga, seccionando-lhe o pescoço e deixando a cabeça presa ao corpo apenas pela pele da nuca. Era o fim do nosso querido herói.
Depois de horas, um pouco refeitos do terror que testemunháramos, fizemos um pacto: nunca esqueceríamos Rufino, nem perdoaríamos os ximangos por sua crueldade. Dali em diante, seríamos para sempre Maragatos. E rematamos, antes de voltarmos para casa e para a surra que certamente nos esperava: Viva Assis Brasil! Viva Rufino! Vivam os maragatos!
NOTA: Este conto faz três homenagens: 1. Ao meu saudoso pai, o menino de seis anos que presenciou este episódio, e que aqui faz o papel de narrador; 2. À minha mãe, que se chamou Rufina; 3. E aos heróis anônimos de todas as guerras, que a história não viu.