A virada
-Para aqueles que dizem que só escrevo coisas tristes, deixo aqui mais uma marca da minha mão suja! O meu lodo está espalhado por cada canto desta sala! - Alfredo lia em voz alta, articulando cada palavra de um jeito engraçado, encenando em frente ao espelho. O papel pretendido era de um escritor medíocre, que com seus trinta e poucos anos, não alcançara o sucesso da crítica, nem do público, talvez, nem o próprio apreço por sua escrita.
-E as palavras que profiro não são apenas imaginação, as sinto com a alma! Faço da minha escrita a métrica da vida! - Alfredo gesticulava mais do que o necessário, caminhava de um lado para o outro e lia cada frase com uma empolgação que em nada combinava com o teor melancólico do texto. Já tinha feito muitos testes, mas sem sucesso em conseguir qualquer papel. Não era um ótimo ator, nem alcançava sequer um patamar medíocre em sua performance ao representar.
-Mas um ator se constrói com o tempo! - Bradava quando questionado! Dizia ele não saber fazer outra coisa na vida, representar era o que mais importava. Depois de algum período de negativas, estava ele ali, na sala de espera de uma empresa respeitável , responsável pela seleção do dito espetáculo sobre a vida e morte da João R. S. Donato, um escritor que só alcançou a glória após a morte, quer dizer, alcançou a fama onde a fama não o podia mais o alcançar, pois só fora descoberto para a literatura 40 anos após sua morte. Embaraçoso para o morto, mas não para Alfredo.
Já tinha lido o texto muitas vezes, se sabia a fala de forma decorada? Claro que não, tinha uma crença esperançosa na sua habilidade de improvisação! Orgulhava-se de ter improvisado toda a fala, durante um teste para a propaganda de uma marca famosa de escorredor de prato! Estava nervoso, o suor escorria de sua testa, suas mãos e pernas agitadas em um angustioso descompasso. Todos os seus pares aspirantes ao mesmo papel já haviam sido chamados, então, está naquela sala vazia fazia flertar com a própria inquietação. Havia um espelho bem a sua frente, que refletia a figura de um homem que já tinha uma “certa” idade, um pouco abatido e deprimido! Quase nunca o que vemos é a realidade. Mas nem sempre somos razoáveis conosco. Sendo assim, Alfredo olhou mais uma vez a sua imagem naquele grande espelho, inspirou e tentou aparentar mais confiança, pois era um ator, ora bolas! Sabia fingir ou pensava que sabia, tanto faz...
Quinze minutos depois na porta da sala surgia um homem chamando por Alfredo. Mas não tinha mais ninguém no recinto. Apenas alguns papeis em cima de uma cadeira, com grifos de marca-texto. Alfredo havia percebido algo, uma coisa importante, que tinha feito sua testa franzir. E após este acontecimento decidiu ir embora. Deixando sobre a cadeira um texto que não tinha decorado.