Tempos Difíceis III
Este é o terceiro e último capítulo deste modesto conto. Espero que você o leia, pelo menos em atenção a este modesto e velho escriba, que faz da escrita um passatempo para suportar a fadiga dos anos.
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Certa manhã, um rico casal foi conhecer os barracões lotados de flagelados. O homem atendia pelo epíteto de coronel Germano, rico fazendeiro que sofreu, como os demais, os rigores da seca inclemente. As intempéries cobraram-lhe vultoso ônus, subtraindo-lhe o rebanho bovino, vitimado pela escassez de alimentos e de água. Restava-lhe, contudo, um grande armazém de secos e molhados, cujo estoque vez ou outra se reduzia pela ação violenta de pessoas submetidas ao opróbrio da fome.
Na visita ao barracão onde se arrancharam Mário, a esposa e o filho Vicente, o coronel Germano e dona Umbelina, sua esposa, gostaram da infantil figura do menino, garoto esperto, de boa aparência, apesar das dificuldades passadas e presentes. Sabedores da má sorte da família pleitearam a adoção da criança, garantindo-lhes criá-la e educá-la sob a égide da moral e dos bons costumes. Dar-lhe-iam conforto material e sabedoria secular.
Chorosos, porém conscientes de que a adoção seria a redenção de Vicente, seus pais não se opuseram. Depois de muitos beijos, abraços e recomendações, entregaram o filho ao casal, na esperança de um dia vê-lo vencedor dos obstáculos que a vida lhe conferiu com tamanha crueza.
Naquela noite, Mário e Joventina passaram horas em agradáveis conjecturas envolvendo o filho querido. Sabiam que a saudade os consumiria, porém as futuras vitórias de Vicente superariam as dores.
O garoto deixou os pais entregues à própria sorte, forçado pelas circunstâncias. Todos sentiram a dor da separação, tão mais forte e desumana quanto a fome e o desconforto vivido no barracão. Ali, juntamente com os demais indigentes, permaneceriam até que a terra voltasse a receber a chuva benfazeja e passasse a produzir o necessário para viverem condignamente em seus próprios domínios, livres da fome, da sede e das doenças que vitimaram tantos dos seus companheiros de adversidade.
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Os dias, depois, os meses, transcorriam cheios de dificuldades. A severa estiagem causava atroz sofrimento ao sertanejo menos favorecido. Coadjuvada pelas doenças endêmicas que grassavam intransigentes, causava-lhe desânimo. Muitos deixaram de acreditar no futuro, para eles não apenas distante, mas, impossível de ser alcançado. A fome, as doenças, o desespero, tudo lhes roubava as esperanças.
Em raras oportunidades, Germano e Umbelina deram notícias de Vicente a seus angustiados pais. Por intermédio de um emissário de poucas palavras, dizia-lhes que o garotinho estava bem nutrido, gozando saúde, e que em breve viria visitá-los, o que jamais ocorreu. O coronel Germano tinha em mente não aproximar o garoto dos pais, temendo dividir o amor que pretendia transmitir e obter do menino.
O distanciamento de pais e filho foi agravado pela transferência de Mário e Joventina para o interior da província, onde passaram a trabalhar em frentes de serviço instituídas pelo governo. Mário foi designado Feitor, comandando uma turma de trinta homens encarregados de melhorar as estradas vicinais da região, enquanto Joventina foi alistada como Barraqueira do acampamento, competindo-lhe o preparo da comida servida aos trabalhadores, invariavelmente constituída de feijão, farinha e um pequeno pedaço de carne de charque.
Às vezes, algum cassaco, nome de um animal semelhante ao gambá, e também apelido atribuído aos trabalhadores sem qualificação profissional, adicionava ao cardápio do dia a carne de um preá, obtida em caçadas realizadas aos finais das tardes.
Preá é um roedor da família dos cavídeos, de pelagem cinzenta e orelhas curtas, encontrado no Nordeste brasileiro e em outras regiões da América do Sul. Com vinte e cinco centímetros de tamanho, assemelha-se ao rato, da família dos murídeos, responsáveis pela transmissão de doenças como a peste bubônica.
Mário e Joventina suportaram a saudade imorredoura do filho querido até partirem para os páramos celestiais, vitimados pela varíola e pela desnutrição. Aos vinte e cinco anos. O destino negou-lhes a satisfação da paternidade, enquanto à Providência aprouve encerrar-lhes os dias de padecimento terreno.
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Germano e Umbelina apadrinharam Vicente, batizando-o na igrejinha do município. Aos três anos de idade, o menino ainda era pagão. Não fora batizado tempestivamente, pois o vigário da cidade falecera vitimado pela cólera, deixando a paróquia acéfala.
Depois de registrado no Cartório de Registro Civil da capital, o garoto adotou os nomes de família dos pais adotivos. Passara a chamar-se Vicente Torquato de Souza.
Nesse cenário carregado de infortúnio para seus genitores, Vicente cresceu saudável, mimado pelos pais adotivos. Em idade escolar, frequentou aulas no Liceu, colégio estadual de boa repercussão nos meios literários da época. As condições lhe favoreceram. Com o tempo, tornou-se meteorologista, especializado no estudo científico dos fenômenos atmosféricos, cuja análise permite a previsão do tempo. Dali em diante, ele estaria prevenido contra a ação deletéria da seca. Seria possível? Ele tinha dúvidas quanto a essa expectativa, pois, a natureza às vezes nos surpreende dolorosamente.