Revelação

- Só eu já matei 39. Fora os que eu passei o serviço pros ‘meninos’. Tem uns ‘meninos’ que trabalham comigo – explicou. Cometiam os assassinatos a bordo de motocicletas. Ressaltou que só executavam “vagabundos”.

Falou e ficou aguardando a reação. Olhou todo mundo no olho. Havia quatro no grupo, gente da imprensa, perplexa com a revelação.

Na televisão do box do galpão de cereais, o Flamengo pelejava pelo Campeonato Brasileiro, na tarde ensolarada de sábado. Era outubro, véspera de eleição. Naquele instante o movimento já declinava: comerciantes baixavam as portas metálicas dos boxes, ambulantes faziam os derradeiros pregões dos produtos importados da China, verdureiros promoviam uma “xepa” incisiva, porque as hortaliças definhavam. Nem as vendedoras de bilhetes de loteria e de amendoim torrado circulavam mais.

Ninguém disse nada, todo mundo estava bêbado. Mas aquela revelação diluiu o álcool no sangue. Ficaram estupefatos.

- Êta que o ‘Mengão’ tá perto do gol! – Vibrou um fotógrafo, frouxo, que aproveitou para se afastar do grupo. Fingiu atenção à peleja na tevê. Aquelas frases reverberavam, cáusticas, nos ouvidos. Os demais gaguejavam, garimpando palavras que fugiam, ariscas, para responder.

- Eu também trabalho com “Bira” – afirmou o jovem, com jeito de matuto, que secundava o grupo.

Ele chegou ali meio-dia. Dividiu a mesa com a imprensa, pagou cerveja, compartilhou o tira-gosto, comentou o futebol e a política, anunciou que era gente da roça. Até polemizar, polemizou, sobre a eleição que ia acontecer no dia seguinte. Tinha candidato, fez uma defesa enfática, contestou o que o interpelara.

- Seu amigo não vai ficar chateado? – Indagou, persistente, sobre o sujeito que ele contestara. O interlocutor respondeu que não, mas mesmo assim ficou ressabiado, examinando cinturas à procura do volume da arma. Depois relaxou, até ficou bêbado também, imerso naquela algazarra, despido das cautelas habituais.

Adiante, aproveitou gulosamente o silêncio decorrente da revelação que ainda vibrava no ar. E continuou:

- Sou um dos ‘meninos’ de “Bira”. Vagabundo tem que morrer mesmo. Eu cá também já deitei gente – revelou, lançando um olhar vazio –. Mas defendo o cidadão de bem, vi que vocês são gente decente, gente de bem...

A ressalva não atenuou a inquietação. O dia expirava sob os raios paralelos, avermelhados, do sol. No galpão, os comerciantes aguardavam que os retardatários esvaziassem os copos. O chilreio dos pardais funcionava como trilha sonora, intermitente. No grupo, o silêncio persistia, eloquente:

- Saideira, saideira – comandou o mais experiente, de revoltosos cabelos grisalhos, tentando desanuviar o ambiente.

Beberam de pé, copo americano na mão. O comerciante calculava a conta alta, agradecia as presenças, feliz com o lucro. E limpava as mesas plásticas de cervejaria com uma flanela, empilhava-as depois para liberar espaço. O mais frouxo batucava a tecla do Flamengo, renitente; o de cavanhaque acompanhava, estupefato, o matador mais jovem que, agora, monopolizava o papo, alheio às reações. Discorria sobre seu talento macabro.

Despediram-se no portão do galpão, aonde florescia um flamboyant robusto.

- Se precisar de alguma coisa, de algum serviço, podem falar com “Bira”. Estou às ordens. Gostei da conversa com vocês – despediu-se o mais jovem, cuja moto resguardava-se sob a sombra larga do crepúsculo.

O de cavanhaque sorriu um sorriso contido. Era quase uma contração de dor. Destacavam-se seus olhos muito abertos, espantados. Notou que as primeiras lâmpadas elétricas se acendiam, alaranjadas, nos postes de iluminação pública.

Saíram andando, os sicários transpuseram os portões, enveredaram pela avenida que conduzia à favela próxima do entreposto comercial. O silêncio se estendeu por intermináveis segundos. Mais melancólico, porque a tarde de outubro estertorava numa agonia infindável:

- Vamos tomar a saideira lá no centro da cidade para rebater. E esquecer essa conversa – convidou o mais velho, respirando fundo.

No céu sem nuvens, despontava uma lua citadina, acanhada, cuja luz diluía aquela névoa de sangue que os olhos projetavam ao redor. O de cavanhaque sentia, na boca, o sabor metálico que prenunciava a ressaca.