Réquiem das Pedras
Trabalhava sozinho.
Da aurora até quando o sol se tornava vermelho, selecionava, lavava e triturava olivas.
Ainda usava um lagar tradicional. Justamente por isso, prolongava os dias na moagem dos frutos prontos para produzir o mais puro e fino azeite.
A qualidade do seu produto ultrapassava fronteiras e havia sustentado a família, formado patrimônio e educado os filhos.
Sozinho, vivia momentos de verdadeira epifania a observar a transmutação dos frutos no líquido verde intenso de cheiro marcante e sabor excepcional.
Por mais de vinte anos, ganhava o pão, produzia azeite e observava com gratidão a fluidez daquele óleo santo que o agraciava todos os dias.
Naquele ano, quando a colheita se tornou farta e o cheiro dos olivais inundou as noites, sentiu não só que teria uma produção excepcional como seria capaz de produzir o melhor de todos os óleos já produzidos.
As primeiras prensas vieram límpidas e comprovaram o que havia imaginado. No meio do processo porém, um ruído...
Um som interrompido e retomado. Um barulhinho, seguido de outro maior. Oco, grave.
Parou a moagem e apurou os ouvidos. Lentamente moveu o lagar. Parou e respirou atento. Com muita delicadeza voltou a mover a alavanca. Lá estava, baixo, persistente, presente.
Algo que encostava e roía. Uma presença que lembrava que alguma coisa não ia bem. Que algo estava dando errado.
Mexeu na massa pastosa das olivas. Desmontou o que podia. Olhou frestas, alavancas, descartou a massa perfumada, colocou um novo lote, mas lá estava o barulho.
Nervoso, substituiu a pasta meio moída por nova porção de frutos e recomeçou a moagem com vigor.
O mesmo barulho.
Algo pedrogoso se instalava entre ele e o azeite brilhante que ocuparia as garrafas.
Eram pedras. Não havia dúvida. O som de pedras pequenas, enroscando em algum lugar, cortando e estragando as azeitonas macias. Um desastre. Algo que estragaria tudo se não fosse resolvido.
Por toda noite tentou localizar as malditas pedras. E também na manhã seguinte, na tarde, noite, nos dias subsequentes. E sempre que acreditava ter acabado com o problema, os sons voltavam. O líquido antes puro e agradável escorria agora amarronzado, manchado e sem vida.
No final de quinze dias a colheita estava comprometida. O chão antes limpo e brilhante guardava os restos do que antes haviam sido frutos tenros e promissores.
Já não cuidava do equipamento e nem se importava com as roupas, mas as pedras continuavam com seu barulho torturante.
Começou a pensar em outras coisas, a ouvir o mesmo som em outros lugares. Por onde ia havia pedras.
Pensou na esposa que já não o notava. Lembrou da distância entre eles, da falta de contato apesar dos dias calmos e monólogos precisos. Pensou na solidão da cama antes do casal e agora de corpos que dormiam por dormir. Ali também estavam as pedras.
Pesou a rotina da vida. Os dias que se transformavam em meses e depois em anos. A mesmice tranquila e imutável de todas horas. E se antes acreditava que a vida fluía sem sobressaltos constatou amargurado que estava enganado. Havia pedras ali.
Lembrou-se dos processos de dor. De todos os obstáculos no caminho. De todos os detalhes diários que desgastavam, machucavam, estragavam e minguavam os sonhos e planos. Neles também existiam pedras. Maiores ou menores, mas mesmo assim, pedras.
Sentiu o gosto amargo dos nós na garganta, da ardência dos olhos segurando o choro, do bolo no estômago tapando a boa, mas gritando na mente, atordoando a cabeça. Pedras! Pedras! Pedras!
E então por fim, pensou na solidão. Até então não havia notado que ela existia. Horas sozinho no trabalho de todos os dias. Noites amenas onde a imaginação e os sonhos se agitavam, mas sempre em silêncio. Ecos de vontades sempre à espera.
As cenas rolavam em sua cabeça em uma avalanche dolorosa de perguntas. Pedrinhas de desgosto, pedras de insatisfação, rochas de problemas não resolvidos, picuinhas de vivências diárias que se quebravam e se espalhavam como inúmeros grãos em uma praia de angústia e de incertezas.
E a sua vida, que até então deslizava em engrenagens perfeitas e azeitadas, ruía como castelos arenosos em uma tempestade.
A raiva então explodiu. Lágrimas extraídas antes a frio, saltaram como erupções purulentas do ódio que sentia. Quebrou as engrenagens. Depois quebrou os potes, as bacias e as ferramentas agora imundas com o bagaço das azeitonas rançosas.
Destruiu o largar que rangeu e se abriu em vários pedações mostrando os veios da pedra bruta de suas entranhas. Martelou, chutou, cuspiu e por fim, impulsionado pela loucura que cegava ateou fogo no que restava do lugar santo do seu ofício.
Exausto, respirou aliviado.
Havia se libertado!
Uma nova vida começaria. Nada de pedras de qualquer tamanho em seu caminho. Construiria uma nova prensa. Mais moderna, mais equipada. Dobraria a produção sem perder a qualidade.
Reconquistaria a esposa, a paixão, a cumplicidade e o sexo.
Seria novamente dono dos seus sonhos, do seu tempo, sem pedregulhos a enroscar-se na sua garganta.
Não se contentaria com frases feitas, caras amarradas, humor ruim, noites vazias. Queria mais e merecia!
E assim, pleno de ideias e decisões, marchou a passos largos e peito estufado para contar a novidade na hora do jantar.
No quarto, ouviu o som característico da casa e a esposa reclamando de alguma coisa. Pensou no rosto abatido e triste que sempre acompanhava a voz dela.
Um pequeno pedaço de pedra brilhante, colada no sapato, acenou para ele.
Lentamente arrumou a mala e foi embora.