O DESCONHECIDO ÍNTIMO

Desde ontem o sol é uma laje além da porta. Havia chuva a bater no zinco dos telhados e o poema acordou a noite num veterano sono de paisagens. Os pés estavam frios e os dedos tiniam de câimbras. No pé direito, o dedão mais parecia um pequeno mastro de bandeira num dia de parada militar. Doía altivo e rijo como se apontasse algo de novo no retesamento dos nervos estressados dos setenta bem vividos.

Não há como registrar sem sobressaltos essas sensações incomuns em meio à noite alta e incômoda. Deitara-se bem antes da hora de costume, como quem chega à plenitude de saber-se chamado a prestar contas à consciência, e assim pretendera um sono bom, reparador.

Os três gatos miavam e roçavam os corpos e caudas naqueles pés retesados de dor. Parecia-lhe haver agulhas nos nervos. As veias intumescidas saltavam pulsantes de dores e também havia no ar um temor inominado. Já tinha levantado cinco vezes para levar o líquido usado que se acumulara no corpo gasto direto para o vaso sanitário. E a cada vez que voltava à cama, nos silêncios intermitentes do ressonar compassado da parceira cansada, ocorria a expectativa de que o titular do tempo e do mistério falasse: bom-dia, seu inútil!

Mesmo assim conseguira conciliar o sono nas quatro tentativas de organizar o pensamento para não desacomodar o ambiente da casa, vale dizer, não fazer barulho e nem alvoroçar o escurinho da noite, já que precisava cumprir a (sua) sina de recuperação dos cansaços do dia anterior. Um pássaro, lá fora, emite um grasnido e o assusta.

A casa está em obras e no pátio está tudo em desordem. Sabe aquele esparramo de buracos, ferramentas, paus de sustentação, tijolos, cimento, areia? Como se não bastasse, chuva escorrendo nos vidros e um filete de água marcando o caminho, não somente nas retinas, mas aquelas tatuagens que marcam o desordenado pátio do lugar comum dos dias.

O personagem insone está aparentemente bem, apesar dos sobressaltos dentro de sua pobre cuca atazanada de inquietações. Vai ao banheiro, erra o cálculo e o jato de urina molha o papel higiênico e não havia um novo rolo ao alcance da mão. Retesado no assento do vaso, não mais agora somente nos dedos do pé, havia iniciado a operação nº 2 e os intestinos reclamavam concentração para que pudesse exaurir a tão comum e necessária excreção dos resíduos sólidos.

A gatinha mais nova, uma persa albina sapeca, roça o rabo peludo nas pernas e lhe faz pensar: os gestos e as repentinas ações dos felinos, curiosamente ajudam a relaxar. Lava o rosto com muito pouca vontade, os olhos teimam em não abrir. Querem, talvez, informar que estavam cansados de tanto ler. Ontem eles haviam se excedido: estiveram ativos por todo o dia no ato de leitura. E ele não se apercebera do desgaste. Bem, mas o que era mesmo que haviam lido ou acumulado nos registros de memória recente? Estavam acostumados a esta rotina de ler e pensar havia tantos anos que nem mais reclamavam das longas e acachapantes horas de dedicação ao trabalho doméstico diuturno.

Bobagem, pensa, é preciso alimentar os neurônios para que excretem alguma coisa que preste. Talvez nasça um poema, um conto, uma crônica ou qualquer outra coisa aproveitável, de modo a que a vida não pareça abestada ou inútil a cada novo grupo de implacáveis rememorações septuagenárias. Afinal, os olhos já viram tantas coisas e fatos, tanto abertos como fechados. Bem, parece que a chuva estancou e os gatos exigem comida. Tudo o que lhe povoa a mente neste justo momento talvez merecesse umas singelas anotações manuscritas.

Não podia acordar os que dormem, mas a vida, exigente e lépida, continuava. As câimbras cessaram e a ansiedade disse estar com fome e sede. Pegara um livro, abrira a porta da frente aos peludinhos, enquanto um brando olho de sol matutino dá-lhe um bom dia!

Um carreiro de formigas cortadeiras trabalha à margem dos canteiros e uma cigarra cantadeira e o seu estridente canto parece lhe irritar os ouvidos, pois insistentemente coça as orelhas. Sai com cuidado, fecha a porta e os gatos em alvoroço miam aos seus pés já sem dores aparentes. Sentiu que era necessário exercitar os músculos para que o corpo não reclame, impotente de ações.

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São cinco e meia da manhã e constato que a vida quer continuidade. Ponho a água a ferver e a despejo com cuidado no coador. O café se derrama quentinho até os capilares. Sinto-me bem. Pego uma caneta e uma folha virgem. Talvez surja algo que preste de uma cabeça mal dormida. Olho o pequeno jardim em rebuliço e os araçás túmidos de vermelho quase sangue e algum verde retardatário, molhados de noturnos orvalhos e pingos fininhos de chuva escorrendo nas ramas, demonstram que a doçura dos dias se entranha na beleza das flores e nos frutos sazonados, prontos para o consumo.

Porque é assim mesmo que a vida se dá: O claro e o escuro dos dias, a algaravia diurna e o silêncio da noite, o descanso e a azáfama cotidiana. Tudo pra que constatemos que estamos vivos, com fome de viver, e que temos o Absoluto dentro de nós como clava de proteção e defesa contra o mal, que está de mãos dadas com o que é benfazejo, e se camufla pra não sair de seu esconderijo. Afinal, ele também que se proteja. Porque, pensa, ele também se protege com os seus anjos maledicentes...

Minha mão esteticamente avara, de beleza assentada no rio das coisas, em ideias e palavras, constrói e/ou registra o ócio com dignidade que os períodos de férias representam. Bom isso, não é mesmo?

Então, de somenos, depois desses inquietos momentos, os meus pés também estão bem, dormiram sobre um travesseiro só deles, de modo a ficarem em plano mais alto do que o corpo e agora descansavam sobre confortáveis chinelos. A boca está ativa e a sensação gustativa sugere um brioche, que estava avaramente guardado para o requinte do desjejum de uma noite predestinadamente singular. Espreguiço-me, bocejo, olho o céu de fevereiro, escuto o mar pleníssimo de temperanças.

Um canário agreste brinca num emaranhado de fios e uma andorinha afoita bate asas e leva junto o seu parceiro. Talvez esteja começando a longa travessia até o polo, em sua migração austral. Um pássaro rasteiro corre desajeitadamente e pipila no pátio. Fumacinha, a gata caçadora, alça as orelhas e permanece alerta, à conta dos instintos.

Black, o negão malandro de mais de 10 anos, olha sonolento aquilo que lhe parece muito natural ao ambiente e aos instintos: um passarinho saudando o dia, saltitando no pátio. Deverá estar pensando: e este velho inquieto metido a escritor, em vez de voltar pra cama, fica me incomodando a paciência com os seus pesados chinelos, que seguidamente me machucam o rabo...

Os pássaros voam um a um, despedindo-se em algaravia; os gatos voltam a dormir e ronronam; os outros passageiros do expresso noturno roncam de vez em quando. A dispneia diz a que veio, sobressaltando o vivente. E eu, mais calmo e paciencioso, descubro que até o Nada tem função no mundo, especialmente quando o relator tem pouca motivação para a lavratura de sua peça escritural, porém a mão ágil de inquietações necessita falar antes que o tempo cale as vozes, os roncos, os gatos, os pássaros e os sonhos durante a longa noite e os seus agônicos personagens.

O escriba cochila sentado na soleira da porta do lado ameno do chalé, protegendo-se do sol já um pouco forte, puxa pra dentro dos pulmões um longo hausto da neblina remanescente, e novamente os gatos, os pássaros, as formigas e a chuva ensaiam novatos passos em meio ao rei das luzes que nos espia e que mais tarde nos fará expirar um tanto de sufocos, à força de calorões e suadores. Este mesmo astro-luz, amarelo e gordo, bochechas avermelhadas, que saúda o alter ego falante, a mim, os duendes albergados nas flores, nas ramas do jardim e, num repente, duas lagartixas que fogem apavoradas perseguidas pelos gatos.

Os araçás vermelhos de bochechas verde-amarelas balançam nos galhos e um sabiá com filhotes bica e bica neles, buscando aquilo que lhe faz falta para ter energia e vivacidade para alimentar a vida em desenvolvimento.

Na praia deserta de gente, o mar, agora agitado, segreda ao vento: cuida de não derrubar algum barco e vir a machucar os pescadores. Em cada casa existe a fome de viver a ser saciada. E a vida segue pacienciosa e paulatina em seu ritual cotidiano, rútila e plástica entre alguns melões maduros dos canteiros do vizinho que tem filhos pequenos: uns tinhosos de três e quatro aninhos.

Por sinal os tais azougues estão neste momento catando minhocas na área de terra úmida junto à latrina, só pra apertá-las entre os dedos e espremê-las bem devagarinho, antes de levá-las em direção à boca escancarada. E logo em seguida cuspir com dificuldade a meleca que se formara e colava nos dentes e no céu da boca.

À frente da casa, algo chama a atenção: arrastando os pés numa estradinha de terra solta, arenosa, um bêbado faz xixi na raiz de uma árvore novata, retaca e de bom caule, e sai cantarolando em direção ao mar, meio que remexendo e puxando o cadarço à cintura dos fundilhudos calções pardos de sujeira. Depois, masca um pedaço de fumo em rama e pragueja a falta da marvada da cachaça, porque mesmo de soslaio se pode ver que suas mãos estão trêmulas por falta de grana e involuntárias abstinências...

Tudo muito igual no rol dos dias entre homens e bichos, em que apenas parecem mudar os olhos e ouvidos ávidos, mercê das angústias e inquietações, no exato momento da ação prazerosa. E, por esta singela constatação, é sempre única e inesquecível como aquele dos pais no dia em que nascemos. A semelhança ou a possível igualdade não está no fato da ocorrência, seus personagens reais (e os irreais) e o nome que se lhes queira dar, porém na maneira ou situação em que as coisas, atos e fatos se entranham na memória.

Cada dia a seu modo, cada coisa feito uma nódoa – a mancha que resta da condição de estar vivo – à vista do atento observador. Um pigmento de tatuagem sob a epiderme. Cabeça prenhe, sazonada de situações e personagens que dão cor e vida ao passar dos dias.

E um alter ego qualquer – recém-aportado ao diálogo – estende-me a mão quentinha, numa intimidade um pouco difícil de acreditar...

– Do livro A VERTENTE INSENSATA, 2017/18.

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