Ponta d'Unha
- Ainda bem que a Lua daqui é Turca, aquela que aparece em muitas bandeiras, alguns a chamam de Crescente. Não é mais que uma ponta d’unha viajando incessante no céu. É um gancho, dá pra laçar. Vou sair daqui do buraco depois que laçar o gancho da Lua Turca. Lá de cima, passo de sol a sol, de estrela a estrela e durmo nos colchonetes de nuvem quando me cansar. Vocês nunca mais vão me ver, mas eu vou ver o mundo lá de cima, e caçoar de vocês... de lambuja.
Nascemos numa panela, dizia o povo. Se cobrir vira circo, se cercar vira hospício, rima toante, assim reclamavam e declamavam os pessimistas. As bordas da panela eram serras, serras por todo lado. Do alto da serra, desciam regatos e voçorocas. No alto do céu, depois da Nova, passava a Lua Turca todas as noites. A Cheia nunca vinha.
- Não vem Lua Cheia porque enterraram uma cabeça de burro nesse buraco. Nada vai pra frente, coisa bonita tem medo de nós. Só casa velha, só casa assombrada.
Um deles, embuçado pelas sombras da noite, disse que a Lua Cheia vinha sim. Que ela saía detrás da serra, enorme, mandona, patroa. Só não vê é quem não gosta de poesia.
Ninguém alçou a voz, nem disse que sim nem que não. O que era a poesia? Pra que servia? Silêncio.
Os meninos conversavam sentados no passeio toda noite, a Lua Turca escutava. Ela gostava daquela conversa sem eira nem beira.
Consta que a Lua Turca pensava. E comentava com não sei que estrela, uma que se posicionava no Escorpião:
- Algum dia eles vão escutar mais do que falar. Mas aí já serão tristes e velhos.
Lá de cima, notava-se a ausência de um e outro. Apareciam no dia seguinte ou uns dias depois. Outros nunca mais se juntavam pra conversar na porta das casas. Já naquele tempo havia doenças repentinas, acidentes malignos, Deus já levava crianças pra Ele mais cedo. Lágrimas corriam pelos olhos das famílias, mas a vida continuava.
Havia três tipos de noite: a estrelada, quando não havia luz no buraco, era a mais linda, um rosário de estrelas enlouquecendo de bonita; a enluarada, de Lua Cheia, que só vinha em noite de chuva há muitos anos, diziam, até desenterrarem a cabeça de burro, que ninguém sabia onde estava; e a noite de Lua Nova era quase igual à noite estrelada, se não havia luz nas ruas não tinha diferença.
A luz sempre acabava ou era muito fraquinha. Os meninos e as meninas brincavam de roda na rua, a Lua vigiava, às vezes pensava em descer, mas quá, quem há de achar que Lua pode descer a hora que quiser? Ia causar uma tragédia, meninada correndo pra todo lado, gritando mãeeeeeeeeee, isso aí. Mas que dava vontade, dava:
- Onde está a Margarida, olê, olê, olá?
A parte que a Lua mais gostava:
- Ela está em seu castelo, olê, olê, olá.
Duas moças mais velhas saíam de casa quando escutavam a cantoria. No quase breu da noite, convidavam as crianças pra brincar de passar anel. A luz fraquinha, com cara de tomate maduro, lamparina, ou luz nenhuma, que muito acontecia, favoreciam as duas moças, que, nessa idade, só pensam em namorar. Elas provocavam os meninos. Ao passar o anel por suas mãos, demoravam um pouquinho mais para eles sentirem o calorzinho daquelas mãos delicadas dentro das deles e cochichavam falando nada, só fazendo vento em seus ouvidos. A mais velha delas ainda relava a língua lá dentro, como fosse sem querer.
O mais levado dizia:
- Para com isso, que tá levantando.
Esse mais levado tinha um irmão que já namorava e adorava o escuro pra se enroscar com a moça. E contava tudo ao menor, sem pensar que o menino podia dar com a língua nos dentes e arruinar aquela reputação feminina.
- Domingo fomos ao Jardim, depois ao cinema, sessão das nove, não sei nem que fita passou. A gente deu um garro o tempo todo. Voou pena pra todo lado.
O mais tímido mais sonhava:
- Isto aqui é um buraco. Vou sumir daqui um dia. Vou fugir com o circo.
- Circo?
- Os circos rodam o mundo. Quero sair deste buraco. Vou voltar, mas só de visita.
A Lua, cúmplice, piscava. Usava brincos enormes, tintilando. Às vezes, a engrenagem do universo dava de travar, a freada podia acabar com o mundo, as avós se persignavam. Diziam que os tsunamis são causados por uma freada brusca. A Ponta d’Unha, outro nome da Lua Turca, também sentia o baque, os brincos tintilavam, pareciam cincerro no pescoço de vaca, quase caindo das orelhas.
- Vou sair deste buraco. Fujo com o circo e laço a Lua quando cruzar a Mantiqueira.
O circo chegou. A mestra de cerimônias chamava-se Lua, era também acrobata. Vestia blusa e maiô justinhos, encantava os meninos. Usava brincos, curvava-se para saudar o público, dava um mortal, os brincos tintilavam, mas ela caía em pé, ereta, na ponta da língua a saudação tradicional:
- Respeitável público!
E aí entrava a trupe toda, palhaços, bailarinas, acrobatas, trapezistas, a bandinha tocando, um realejo tocando, girando no picadeiro. Os meninos já conheciam todos os artistas, porque desfilaram com eles de manhã, para chamar a atenção da cidade, batendo em latas velhas com pedaços de pau, atrás de todos os artistas. Fazendo isso garantiam entrada à noite, o comprovante da participação era o dorso da mão marcado de graxa de sapatos.
- Eu nunca vou sair daqui, dizia o magrinho. Preciso do colo da minha mãe.
- E seu pai? Não conta?
- Vive sumindo. Fica uns dias, some outros. Aparece, some. Some, aparece. De vez em quando, chega o reio na gente.
Os homens sustentavam as famílias com carvão e minério de ferro.
Abriam mais buracos no buraco. Não bastasse o ouro, que também se arrancava do chão e que tinha ido quase todo pros gringos pelas mãos dos portugueses.
- Essa pouca vergonha não é de hoje!
Quem disse isso? Silêncio.
Poucas mulheres trabalhavam fora. A maioria cuidava dos filhos até botarem corpo. Quando cresciam um pouco, elas se doavam à fábrica de tecidos do lugar e seus teares, até se aposentar. Os fiapos de algodão se agarravam na cabeça e elas encaneciam mais depressa.
Os meninos rezavam pra Lua, contavam estrelas e vagabundeavam com os pensamentos.
- Eu vou sair só quando ficar rico, caçando ouro, sussurrou o mais tímido.
- E onde ainda tem ouro por aqui?
- Antigamente, escorria na enxurrada que descia lá da Zona. Hoje não. Meu tio sabia catar, guardava as pedrinhas brilhantes nuns vidrinhos e vendia quando precisava. Hoje, ainda tem, mas não à flor da terra, tem que cavar muito. Cada dia mais fundo.
Lá na serra, o fogo queimava tudo. Faltava chuva, de dia o sol esturricava.
- O mundo, um dia, acabou em água. Agora vai acabar em fogo. Nunca mais vai chover.
Os meninos olhavam pra serra e pensavam no fim do mundo. Cada um, com certeza, terminava com ele de sua maneira. A Lua Turca, impávida, já lá ia cruzando para o poente. Gostava de conversar com esses meninos, mas havia outros além da serra. Quando passasse pelo Paraguai, Bolívia, Peru, tinha que entender guarani, quéchua, aymará. Pois aprendeu, no seu eterno girar. Os meninos de lá também conversavam com ela. Até na Ilha de Páscoa havia meninos, meninos-iguana, que também a adoravam.
Lá embaixo, no buraco, faltava luz, aí é que mais tagarelavam. O mais tímido, cheio de espinhas, apontou pra Lua:
- Ainda bem que a Lua daqui é Turca, uma ponta d’unha, dá pra laçar. Vou sair daqui, depois que laçar e montar no gancho da Lua. Lá de cima, passo de sol a sol, de estrela a estrela, durmo em colchonetes de nuvens. Vocês nunca mais vão me ver, mas eu vou ver o mundo lá de cima e caçoar de vocês... de lambuja.
A Lua assentiu, balançou a cabeça, os brincos tintilaram, ela sorriu. Deu um salto no céu, fez um mortal triplo e voltou à posição normal. Os brincos tintilaram de novo. Usava uns enormes, três ou quatro em cada orelha.
- Respeitável púbico!
Aquele menino tímido foi o único que não reclamou da vida. Pergunte à Lua Turca, Crescente, a Ponta d'Unha.