Entre Luanda e Maputo
O diretor regional estava com a cabeça quente: duas vagas e duas interessadas para a África portuguesa: Luanda, em Angola, Maputo em Moçambique. A batata quente cai na sua mão. Uma grávida, outra com bebê de alguns dias. O impasse é que ambas querem Luanda, e se acham cada uma no direito. Há pedidos de senadores, deputados, vereadores, todo tipo de autoridade envolvido numa questão meramente administrativa.
O diretor está à beira de um ataque de nervos. Ambas, porém, insistem, querem Luanda, não abrem mão. Maria, grávida, quer ficar mais perto do Brasil. E Luanda é tudo de bom. Mas Anita também. Os voos diretos e diários de Luanda para o Brasil fazem toda a diferença, alardeiam as duas candidatas e seus torcedores.
E a questão primal se impõe: quem irá para Luanda: a grávida ou a lactante? Quem tem preferência: o bebê nascido ou o nascituro? Sem definição, esgota-se o dia, esgota-se a energia, o diretor vai para casa, extenuado.
Em casa, promete dormir cedo. Engole alguma coisa, grunhe um boa-noite para a mulher e cai na cama. Pensa que vai dormir logo, amanhã é outro dia. Conta carneirinhos, pavões, onças, tigres, leões, javalis, mas nada de dormir. Pensamentos vão e vêm. Tenta desviar o foco. Humor, sim, humor tudo resolve. Vêm-lhe à mente as piadas de português. O garçom que trouxe 8 copos d'água para 4 pessoas. Trouxe 4 cheios e 4 vazios. E, quando inquirido, explicou-se:
- Trouxe 4 vazios, ô pá, porque alguém podia "não quereire..."
Seu pai detestava esse tipo de humor, mas ele, há tanto tempo no Brasil, não se importa. Ri sempre, mesmo das piadas repetidas. Mas nem o humor desviou sua atenção do problema que teria de resolver no dia seguinte. Que droga! A questão das duas candidatas não o deixa dormir. A mulher se inquieta, percebe a inquietação no quarto:
- Que está acontecendo?
- Nada, questão de trabalho. Mas, tranquila! Amanhã resolvo e tudo volta ao normal.
Mas não dorme. Lembra-se do pai, que lutou na guerra de independência, do nome antigo de Maputo, Lourenço Marques, aliás, quem foi Lourenço Marques? O Google diz que é um explorador português, ah, bom. Lembrou-se de quando em Lisboa, adolescente, os putos, como diziam, no já longínquo 1975, desfilavam com cravos nas pontas dos fuzis. Imagina um bombardeio, um tiroteio transformar-se numa guerra de flores, canhões vomitando vitórias-régias? Só Spielberg... Com esses pensamentos, já quase amanhecendo, pegou no sono.
Dia seguinte, dia de decisão. A reunião se alonga pela tarde, ameaça alcançar a noite, os argumentos parecem todos pertinentes.
- Diretor, creche é mais fácil em Luanda, diz a lactante.
- Mas em Maputo também tem, diz a adversária.
- Mas sair de Maputo para o Rio ou São Paulo é uma África, como diziam antigamente. Coisa pra lá de difícil.
- Mas o salário em Maputo é maior.
- Mas tudo é mais caro.
- Mentira, em Luanda tudo é mais caro, uma coca-cola é 15 reais.
Uma reunião num dia, outra no dia seguinte, argumentos de cá e de acolá, discussões infindáveis. Padrinhos daqui, senadores de lá, deputados no meio, a empresa é privada, mas o poder público está irreversivelmente atrelado, é melhor não desgostar um desses grandões.
O diretor, coitado, está quase arrancando os cabelos. Uma questão meramente administrativa se torna política e pode ir parar no Juizado de Menores, na Vara de Proteção à Criança etc. etc, de repente até no Supremo. Seu emprego está a perigo, os chefes acima não querem problemas com os padrinhos das interessadas, já que podem interferir nos negócios da empresa.
No final, para resolver o irresolvível, arriscando, talvez o emprego, desesperado, dá o veredicto final:
- Vai pra Luanda a gestante, vai pra Maputo a que pariu.