VIDRAÇA DE SOLIDÃO 

Depois da partida de Ari a vida, que já não estava sendo fácil, piorou mais ainda. Tornava-se, também chocha, sem nenhuma graça. Os filhos que já a visitavam tão pouco, revezavam-se burocraticamente. Vinha uma a cada mês e só para pagar a Maria e deixar o sortimento e os remédios para o mês.

Uma ou duas perguntas sobre como estava passando, se precisava de mais alguma coisa e já se preparavam para a partida. Sempre, nas pontas das línguas, uma desculpa de trabalho, de filhos, de maridos para irem embora. Queria sair, mas os joelhos duros, as pernas cansadas e a ladeira em frente, foram fazendo com que se fechasse.

Foi por esta época que redescobriu a janela azul. Tentou de todas as formas abri-la mas, emperrada pela falta de uso, recusava-se terminantemente a obedecer suas mãos. Ari, além de ter pavor de assaltantes, odiava as correntes de vento, enquanto ela as preferia sempre arreganhadas. A empregada também tentou algumas vezes e desistiu. Pediu para que Rosana - a mais acessível - mandasse um carpinteiro para resolver o problema. A filha sempre dizendo haver se esquecido, ou adiando a vinda do tal homem. Talvez tivesse herdado as raivas de ventos passíveis de provocar doenças e os horrores de ladrão do pai. Resignou-se, aos poucos, em ver o mundo pela vidraça suja.

Imaginava ser assim a tal da catarata. Tudo se tornando embaçado, como se constantes nuvens estivessem à frente daquilo que se queria mirar. Mais uma coisa a que se acostumou. A realidade assim vista, mesmo que não deixasse apreciar suas belezas, escondia, por outro lado, as suas feiuras. Mais um tempo, as manchas se adensando e o ver foi dando lugar à imaginação, o que lhe trazia umas alegrias. Encontrava pessoas queridas, o filho há tanto tempo morto, Ari chegando do trabalho com o embrulho de pão nas mãos, as filhas, aos gritos, correndo vindas da escola...

E havia até aqueles dias de visitar a infância e aí não estava mais naquela casa, diante da vidraça turva, mas em outra perdida em neblinas mais longínquas. A mãe, que nem conhecera, lhe aparecia e lhe fazia tranças nos cabelos a lhe dizer o quanto era linda. O pai, que lhe parecia tão austero, pondo-a no colo e lhe contando emocionantes histórias. A vida se refazia, ganhava cores, recuperava a graça.

Um dia veio a bola. Chutada por algum menino da vizinhança, ela despedaçou o vidro indo descansar na cama, junto ao seu travesseiro. Nunca que a vieram reclamar, aqueles malditos. Maria ligou e Rosana se apressou, não em arrumar o carpinteiro, mas em resolver o problema causado pela bolada. No dia seguinte lá estava o vidraceiro e a janela, mesmo não abrindo de jeito nenhum, tornara-se nova.

Esperou que ele fosse embora e partiu para o seu posto de observação. Descobriu então que o mundo estava feio. A dura realidade mostrava as casas pobres do outro lado da rua. A favela mais ao fundo, o morro lá adiante e que um dia tinha sido verde, agora mais se parecia com um deserto. Mas isto não foi o pior. Ruim mesmo foi que o marido, seu filho falecido ainda menino, a mãe a lhe arrumar os cabelos e o pai a lhe contar histórias, nunca mais vieram.