Feridas ou "Animacidas"
- Como se percebe que alguém teve sua alma amputada?
- Há várias maneiras, mas parece que a mais eficaz é perscrutar os olhos da pessoa.
- Já sei: é pelo brilho do olhar que se descobre se a pessoa...
- Não - interrompeu R. -, não é pelo brilho, isso é apenas um clichê. Na verdade, não há um método, uma técnica para perceber a alma. É necessário sobretudo que o observador também tenha a alma íntegra; caso contrário, nada perceberá. A alma íntegra não é algo que se expresse num brilho; não há qualquer teoria para desvendá-la.
- Mas então como é possível saber com certeza?
- Você perceberá, sentirá, e pronto. A alma não é sujeita a diagnósticos; não queira encontrar obras científicas sobre o espírito; vá às pessoas, observe-as, sinta-as. Se quiser livros, procure os de literatura - eles lhe dirão mais sobre o espírito do que todos os filósofos, todos cientistas, todos os psicanalistas. Prefira Dostoievski a Freud, Machado de Assis a Jung. Livros são importantes, mas não deixe que as convicções alheias se sobreponham à sua sensibilidade.
- E quanto a mim? Minha alma está inteira?
- Parece que sim.
- Tenho medo de que a firam...
- Não tema os outros; só você é capaz de mutilar seu espírito. É claro que os outros podem contribuir; porém, eles só terão êxito se você lhes der esse poder, se você abrir a porta e deixar que eles arranquem pedaços de si.
- Como você aprendeu sobre isso?
- Já tentaram ferir minha alma algumas vezes; tenho escoriações...
- Pode me contar sobre elas?
- Sim. Sua curiosidade reflete seu espírito. As perguntas indicam aonde vai a alma. Não acredite, no entanto, nas minhas respostas. Considere que as minhas perguntas são sempre verdadeiras mas não as minhas respostas.
- Farei isso.
- Pois bem: os maiores perigo que sofri vieram de pessoas que pretendiam me ajudar; pessoas que ao entrarem em contato com a minha desordem, meu caos quiseram me colocar nos eixos, impondo-me a ordem.
- Mas a ordem não é algo bom? Como poderiam feri-lo se queriam ajudá-lo?
- A ordem é tão importante quanto o caos. O desequilíbrio é imprescindível. O problema é que as pessoas não querem as tempestades, tem medo delas. A intenção do ignorante é tão vil quanto à maldade deliberada. E a ordem é algo a que se chega sozinho – não acredite numa ordem imposta, numa ordem à qual você tenha que se encaixar: isso não é ordem: isso é o caos socialmente aceito – uma desordem coletiva, que na superfície parece fazer sentido; mas não faz. O equilíbrio pode ser a morte; e o caos, a vida.
- No caos nada subsiste!
- No caos tudo nasce; caso contrário, não estaríamos aqui. Não precisa crer em mim. Escute apenas. Já ouviu falar de Madame Bovary, de Flaubert?
- Já, mas não o li. Li apenas uns contos dele.
- Nessa obra há um bom exemplo de mutilação, no capítulo XI da segunda parte. Vou direto ao ponto: o bem-intencionado médico Charles Bovary, incentivado pelo colega farmacêutico e pela esposa, Emma (a senhora do título do romance), resolve aplicar um novo método para cura de pés aleijados no criado da estalagem, Hippolyte. Embora o criado manco estivesse habituado ao seu “defeito” e a princípio tenha resistido à operação, pois se sentia bem do jeito que era, no fim acaba cedendo, diante da argumentação do farmacêutico - que ajudado pela comunidade - ressalta os benefícios (ou seja, a maior adequação social) que Hippolyte alcançaria com a operação. Charles, então, realiza a cirurgia, com a melhor das intenções e a mais moderna das técnicas, a fim de corrigir a deficiência do criado, dar-lhe equilíbrio. No entanto, a ferida infecciona e, após quase morrer, o criado tem parte da perna amputada. Nos capítulos seguintes, o médico sempre ouve o som da perna de madeira de Hippolyte tocando o chão, o eco do seu erro.
L. esperava que R. completasse a idéia; mas o silêncio se estendeu até que o próprio L. o quebrou:
- O que a amputação de uma perna tem a ver com a mutilação da alma?
- Tudo. Os pais, os professores, os psiquiatras, psicólogos (muitos deles, não todos) são "animacidas", mutiladores da alma. Tal como Bovary, ainda que com boas intenções e teorias bem estudadas, eles agridem os espíritos, dos quais deveriam cuidar. Em vez de propiciar suporte para que se desenvolvessem com liberdade, eles, por medo, por ignorância, por terem as próprias almas mutiladas, trabalham em sentido contrário, a fim de enquadrar as almas nas formas sociais, nos padrões aceitáveis, no desequilíbrio coletivo.
- Isso aconteceu com você?
- Sim. Desconfie sempre. Não confie naqueles que fogem da arte. Não confie nos técnicos, nos teóricos, nos professores. Não confie nos dias de sol, na claridade perfeita, no mar calmo, no lago plácido, na brisa leve, nas flores (tome cuidado com elas!), nos gramados aparados, nos muros caiados, nas famílias felizes, nos homens corretos - sem vícios (e existem homens sem vícios?) -, os jardins bem cuidados, a sobriedade. Perscrute a noite, a tempestade, os subterrâneos, a escuridão, os cemitérios, as florestas, o fogo, as ondas, os espinhos, as pessoas impuras (e existem pessoas puras?) , os viciados de todos os tipos, os mendigos...
- Mas a ordem também é o mundo...
- É, mas não só. Saiba que uma alma mutilada deixa de ser alma; a alma só existe inteira.
- Há como uma alma mutilada voltar a ser o que era antes?
- Um corpo morto e mutilado pode voltar a vida? Pergunte a Frankenstein... E lembre-se sempre, ainda que nunca acredite: é mais fácil mutilar sua alma para encaixá-la no mundo do que conservá-la inteira e fazer com que o mundo a tolere. Na verdade, ter uma alma íntegra é perigoso. Na história, é comum vermos a perseguição daqueles que ostentam essências livres, fortes, autênticas. E quando os perseguidores não conseguem atingir e enquadrar esses espíritos íntegros e cheios de amor, eles acabam matando o corpo...
- Há várias maneiras, mas parece que a mais eficaz é perscrutar os olhos da pessoa.
- Já sei: é pelo brilho do olhar que se descobre se a pessoa...
- Não - interrompeu R. -, não é pelo brilho, isso é apenas um clichê. Na verdade, não há um método, uma técnica para perceber a alma. É necessário sobretudo que o observador também tenha a alma íntegra; caso contrário, nada perceberá. A alma íntegra não é algo que se expresse num brilho; não há qualquer teoria para desvendá-la.
- Mas então como é possível saber com certeza?
- Você perceberá, sentirá, e pronto. A alma não é sujeita a diagnósticos; não queira encontrar obras científicas sobre o espírito; vá às pessoas, observe-as, sinta-as. Se quiser livros, procure os de literatura - eles lhe dirão mais sobre o espírito do que todos os filósofos, todos cientistas, todos os psicanalistas. Prefira Dostoievski a Freud, Machado de Assis a Jung. Livros são importantes, mas não deixe que as convicções alheias se sobreponham à sua sensibilidade.
- E quanto a mim? Minha alma está inteira?
- Parece que sim.
- Tenho medo de que a firam...
- Não tema os outros; só você é capaz de mutilar seu espírito. É claro que os outros podem contribuir; porém, eles só terão êxito se você lhes der esse poder, se você abrir a porta e deixar que eles arranquem pedaços de si.
- Como você aprendeu sobre isso?
- Já tentaram ferir minha alma algumas vezes; tenho escoriações...
- Pode me contar sobre elas?
- Sim. Sua curiosidade reflete seu espírito. As perguntas indicam aonde vai a alma. Não acredite, no entanto, nas minhas respostas. Considere que as minhas perguntas são sempre verdadeiras mas não as minhas respostas.
- Farei isso.
- Pois bem: os maiores perigo que sofri vieram de pessoas que pretendiam me ajudar; pessoas que ao entrarem em contato com a minha desordem, meu caos quiseram me colocar nos eixos, impondo-me a ordem.
- Mas a ordem não é algo bom? Como poderiam feri-lo se queriam ajudá-lo?
- A ordem é tão importante quanto o caos. O desequilíbrio é imprescindível. O problema é que as pessoas não querem as tempestades, tem medo delas. A intenção do ignorante é tão vil quanto à maldade deliberada. E a ordem é algo a que se chega sozinho – não acredite numa ordem imposta, numa ordem à qual você tenha que se encaixar: isso não é ordem: isso é o caos socialmente aceito – uma desordem coletiva, que na superfície parece fazer sentido; mas não faz. O equilíbrio pode ser a morte; e o caos, a vida.
- No caos nada subsiste!
- No caos tudo nasce; caso contrário, não estaríamos aqui. Não precisa crer em mim. Escute apenas. Já ouviu falar de Madame Bovary, de Flaubert?
- Já, mas não o li. Li apenas uns contos dele.
- Nessa obra há um bom exemplo de mutilação, no capítulo XI da segunda parte. Vou direto ao ponto: o bem-intencionado médico Charles Bovary, incentivado pelo colega farmacêutico e pela esposa, Emma (a senhora do título do romance), resolve aplicar um novo método para cura de pés aleijados no criado da estalagem, Hippolyte. Embora o criado manco estivesse habituado ao seu “defeito” e a princípio tenha resistido à operação, pois se sentia bem do jeito que era, no fim acaba cedendo, diante da argumentação do farmacêutico - que ajudado pela comunidade - ressalta os benefícios (ou seja, a maior adequação social) que Hippolyte alcançaria com a operação. Charles, então, realiza a cirurgia, com a melhor das intenções e a mais moderna das técnicas, a fim de corrigir a deficiência do criado, dar-lhe equilíbrio. No entanto, a ferida infecciona e, após quase morrer, o criado tem parte da perna amputada. Nos capítulos seguintes, o médico sempre ouve o som da perna de madeira de Hippolyte tocando o chão, o eco do seu erro.
L. esperava que R. completasse a idéia; mas o silêncio se estendeu até que o próprio L. o quebrou:
- O que a amputação de uma perna tem a ver com a mutilação da alma?
- Tudo. Os pais, os professores, os psiquiatras, psicólogos (muitos deles, não todos) são "animacidas", mutiladores da alma. Tal como Bovary, ainda que com boas intenções e teorias bem estudadas, eles agridem os espíritos, dos quais deveriam cuidar. Em vez de propiciar suporte para que se desenvolvessem com liberdade, eles, por medo, por ignorância, por terem as próprias almas mutiladas, trabalham em sentido contrário, a fim de enquadrar as almas nas formas sociais, nos padrões aceitáveis, no desequilíbrio coletivo.
- Isso aconteceu com você?
- Sim. Desconfie sempre. Não confie naqueles que fogem da arte. Não confie nos técnicos, nos teóricos, nos professores. Não confie nos dias de sol, na claridade perfeita, no mar calmo, no lago plácido, na brisa leve, nas flores (tome cuidado com elas!), nos gramados aparados, nos muros caiados, nas famílias felizes, nos homens corretos - sem vícios (e existem homens sem vícios?) -, os jardins bem cuidados, a sobriedade. Perscrute a noite, a tempestade, os subterrâneos, a escuridão, os cemitérios, as florestas, o fogo, as ondas, os espinhos, as pessoas impuras (e existem pessoas puras?) , os viciados de todos os tipos, os mendigos...
- Mas a ordem também é o mundo...
- É, mas não só. Saiba que uma alma mutilada deixa de ser alma; a alma só existe inteira.
- Há como uma alma mutilada voltar a ser o que era antes?
- Um corpo morto e mutilado pode voltar a vida? Pergunte a Frankenstein... E lembre-se sempre, ainda que nunca acredite: é mais fácil mutilar sua alma para encaixá-la no mundo do que conservá-la inteira e fazer com que o mundo a tolere. Na verdade, ter uma alma íntegra é perigoso. Na história, é comum vermos a perseguição daqueles que ostentam essências livres, fortes, autênticas. E quando os perseguidores não conseguem atingir e enquadrar esses espíritos íntegros e cheios de amor, eles acabam matando o corpo...