A garça manca e o dinheiro do povo
Anderlécio era consultor da Sanvitrê. Veio com sua equipe àquela repartição pública estudar o fluxo do trabalho e criar um sistema informatizado. Apresentou-se, soberano:
- Sou consultor de empresa privada, não dependo do governo pra nada. Desculpem a rima, foi sem querer. Vou passar um tempo com vocês para conhecer o que fazem e criar um sistema para informatizar essa rotina. E ria-se, superior, olhando em derredor e piscando para as garotas da seção ao terminar cada frase.
Cotonho foi o primeiro que se tocou:
- Não gostei desse cara.
Claro, Cotonho gostava era de Raquel e a Raquel era uma das garotas da seção, portanto também um alvo das investidas de Anderlécio. Porém, Raquel nem olhava para Cotonho, gostava de outro colega, mas isso não vem ao caso, pelo menos por enquanto. Sem imaginar, tocou na ferida de seu admirador:
- "Esse Anderlécio é um pedaço de mau caminho", no que foi secundada pelas colegas.
O certo é que Anderlécio foi apelidado imediatamente de "Senhor Empresa Privada", que, com o passar do tempo, reduziu-se a "Privada". Ficou antipatizado de cara, pois queria era humilhar os servidores públicos. Um sindicalista da seção também tomou as dores. E isso mais as gracinhas pros lados das moças criaram a cizânia, inimigos de todo lado, a um ponto de não retorno.
Uma das diversões dos colegas para escapar da rotina do trabalho era observar, amassando o nariz no vidração, os peixinhos coloridos e a limpeza, do laguinho do palácio, feita de barquinho, gondoleiros sem charme. Um dia, vinda do nada, apareceu uma garça desgarrada do bando que pesca no lago Paranoá. Chegou e armou barraca. Já não quis sair dali, já que pescava sem competição. E tinha uma característica que a identificava, mesmo quando apareciam outras: mancava de uma perna. Ficou clara, então, a razão de ter-se acomodado na periferia do laguinho do palácio: não tinha condições de competir no mercado, quer dizer, na natureza. Logo, logo, passou a ser chamada de Sanvitrê, o nome da empresa de "Privada".
Cotonho, vingador, foi o padrinho de batismo. E o apelido corria à boca pequena, em sussurros ao pé de ouvido, até que todos soubessem. Tudo em segredo, ninguém dizia nada ao "Privada".
E enquanto isso, na seção, os dias passando, uma semana, um mês, acabou o semestre e a turma do "Privada" e asseclas só observando, tomando notas, participando do dia a dia, azarando as colegas, criando fluxogramas, organogramas e outras modernices da informática para apresentação semanal ao chefe do setor, que encaminhava a outro chefe e esse a outro etc. etc.. As duas facções foram se familiarizando, alguns menos, outros mais ácidos provocando o pessoal da Sanvitrê, mas "Privada" não conseguia adquirir simpatia de ninguém.
Foi aí que Cotonho, definitivamente enciumado por não ter as atenções de Raquel, comentário airoso ao suposto rival ainda ressoando nos ouvidos, e encorajado pelo sindicalista a defender o serviço público, disparou à queima-roupa, acabando com o segredo e pondo à mostra a razão do novo apelido:
- "Privada", você hoje, oficialmente, muda de nome: você é igualzinho à garça manca, essa aí que pesca no laguinho. Por isso vai ter agora o nome da sua empresa: Sanvitrê. É mole ou quer mais?
Coincidência ou não, o contrato não durou muito tempo depois daquele tête-à-tête. E, segundo Cotonho, todo o dinheiro público gasto no período, como sempre, foi jogado no ralo, pois, algum tempo depois, contratou-se outra empresa para começar o mesmo trabalho da estaca zero. Informação sujeita a conferência, pois Cotonho era suspeito para dar informação e opinião sobre aquele assunto, razões do coração.