Maquiagem ou vale-tudo
“Eu venho aqui há anos. O senhor sabe que sou frequentador assíduo desta casa. Sabe também que não sou de reclamar à toa, sem motivo. Mas o que aconteceu hoje foi gravíssimo, eu não poderia deixar de chamar a atenção pelo que houve aqui nessa noite. E o pior é que eu trouxe convidados - meu chefe e a mulher vieram comigo justamente hoje -, e aí os senhores permitem esse absurdo. Isso é imperdoável. Sim, porque o que aconteceu é um verdadeiro absurdo. Ninguém quer ver o que nós vimos hoje. Francamente...”, disse o homem - que se vestia de forma elegante e aparentava cinquenta e poucos anos - com firmeza e discrição.
“Lamento muito o que houve. Pode ter certeza de que não vai se repetir”, respondeu o outro, com a cabeça levemente inclinada para baixo.
Minutos depois variações desse mesmo diálogo se repetiram. Outros senhores elegantes reclamaram com discrição do que havia acontecido naquela noite. Repetiram-se alguns termos e expressões: “absurdo”, “imperdoável”, “ninguém quer ver”; acrescentaram-se outros: “não se pode permitir esse tipo de conduta”, “não se espera isso nesse lugar”, “uma verdadeira violência, um abuso contra todos que vêm aqui”.
As respostas às reclamações pouco variaram: o homem, afetando culpa e vergonha, se desculpava, prometendo que aquilo não iria se repetir.
A tragédia começou horas antes. Numa ligação rápida e chorosa, um dos garçons do luxuoso restaurante avisou que não iria trabalhar naquela noite. O maître insistiu, gritou, ameaçou demiti-lo, mas não conseguiu fazer com que ele fosse. Em seguida, fez várias ligações e tentou com todas as suas forças contratar um substituto de última hora e não teve melhor sorte. Não havia encontrado nenhum bom garçom disponível. E não era uma noite qualquer: era sábado, noite concorrida, com a casa cheia e o trabalho multiplicado.
A jornada de trabalho começou lenta, como costumava acontecer, e foi ficando intensa à medida que as horas passavam. No início da noite, poucas mesas: cardápios distribuídos, pedidos anotados, o vai e vem mais lento com as bebidas e pratos. No salão do restaurante, todos bem vestidos, a temperatura controlada, um ambiente confortável, agradável. Do outro lado, ultrapassando a porta da cozinha, suor, gritos, correria, calor.
Quem pudesse observar esses ambientes, talvez tivesse a ideia de que representassem o paraíso e o inferno; talvez o purgatório fosse a fila na entrada do restaurante. Mas são poucos os que podem ver todos esses ambientes, e menos ainda os que querem fazê-lo. O problema é que essa comparação não dá conta de explicar a relação entre o paraíso e o inferno: se numa versão religiosa há independência, aqui é o trabalho no inferno que cria o cenário paradisíaco.
O grande problema daquela noite parece ter sido a incapacidade de manter bem afastados aqueles dois ambientes. Foi como uma invasão do inferno no paraíso; como se uma das invisíveis criaturas inferiores que trabalha para sustentar o paraíso tivesse aparecido de repente com toda sua impureza, deslocada no tempo e no espaço.
Essa transformação foi lenta, apesar de contínua e implacável. O incômodo começou com a demora. O trabalho já era muito com todos os funcionários presentes; como estavam em menor número, piorou: os garçons não estavam dando conta dos pedidos. Braços levantados, caras e gestos de impaciência, reclamações, grosserias, cobranças. O maître foi ficando cada vez mais irritado; no salão, entre as mesas e os clientes, ostentava sua face servil mas, quando estava a sós com os garçons, explodia de raiva, chicoteava com a língua, ameaçando com demissão.
“Nem sonhem em parar pra beber água, parar pra ir ao banheiro, andem, rápido, tá tudo atrasado; suas lesmas! Querem ser mandados embora? Querem ir trabalhar em botequins? Querem ir prum muquifo qualquer, pruma espelunca qualquer?”, berrava o maître com os garçons, dentro da cozinha.
Um dos garçons estava mais tenso que os demais. Já havia pedido duas vezes para usar o banheiro; falou baixinho, disse que precisava muito ir. Porém, o chefe não quis nem saber, mal o escutou, disse que não, que ali não tinha nenhuma criança que precisasse ir ao banheiro toda hora e o mandou continuar servindo, correndo entre o salão e a cozinha.
Os clientes, embora irritados com a demora, se divertiam nas mesas. Bebiam, conversavam, comiam. Os garçons sempre ouviam apenas trechos das conversas das mesas.
“Você sabe que eu detestei aquele hotel que o Mário indicou? Que serviço horroroso! Decoração então nem se fala!”
“O Marcelo vai casar na mesma igreja onde casamos e a lua-de-mel eles vão passar na Tailândia, num hotel maravilhoso!”
“... muito bom, excelente, você não faz ideia. Tenho algumas garrafas dessa safra...”
“... sim, também não gostei! Quanto mal gosto! Deus me livre! Querida, eu tenho bom senso...”
Os funcionários seguiam apressados, embora não pudessem aparentar a correria, a pressão e a tensão perante os clientes. Os pedidos não paravam - pelo contrário, aumentavam, mais chamados, mais ordens, mais trabalho.
Para fazer os pedidos, os clientes ainda olham um pouco para os garçons; também na para pagar a conta. Mas na hora de serem servidos, é como se os garçons fossem invisíveis, é como se os pratos e bebidas flutuassem até as mesas. Mesmo assim, com esses olhares rápidos, muitas vezes apenas de relance, alguns clientes ficaram abismados com a aparência de um dos garçons, justamente aquele que havia pedido para usar o banheiro. O que causou tanto espanto foram as feridas no seu rosto e, olhando com mais atenção, também nas suas mãos. Esse garçom tinha manchas roxas na face, em torno dos olhos, feridas no nariz, nos lábios, no queixo; nas mãos, não era diferente.
Um dos clientes, daqueles mais antigos, frequentador assíduo do restaurante, comentou com maître sobre a aparência do garçom.
“Mas o que houve com aquele garçom? Ele está todo machucado.”
“Como assim? Machucado?”, respondeu o maître, surpreso.
“Sim, aquele garçom jovem, moreno, forte; ele está todo ferido; o rosto parece o do um boxeador derrotado. Infelizmente, um convite à indigestão... Até logo!”
O maître foi apressadamente atrás do garçom acusado, o interceptou na porta da cozinha e, quando viu seu rosto arrebentado, tomou um susto:
“Puta que o pariu! Você tá com a cara toda arrebentada! Um cliente já veio reclamar, e com toda a razão! Mas você não chegou aqui assim? Que merda é essa?”
“Eu luto; treino mma, participo de competições, vale-tudo.”, respondeu o garçon.
“Mas como eu nunca te vi arrebentado? Como você estava bem e agora tá assim todo fodido?”
“Eu uso maquiagem. Minha mulher passa em casa, antes de eu vir pro trabalho, e eu retoco aqui. Por isso que eu pedi pra usar o banheiro.”
“Mas que merda! Não acredito! O Paraíba falta e esse aí ainda tem que se maquiar... E o pior é que outros clientes devem ter reparado... Vai consertar isso logo!”
O garçom machucado seguiu pro banheiro dos funcionários. Se trancou lá com o estojo de maquiagem e foi cobrindo tudo que o suor expôs, todas as escoriações da sua última luta. O maître ainda socou a porta do banheiro para apressá-lo.
“Será que a estrela da noite precisa de uma camarim pra deixar a fuça apresentável?!”, gritou enquanto esmurrava a porta.
Em seguida, assim que acabou de se maquiar, o garçom voltou ao trabalho, indo pro salão servir. Quando se aproximou de uma das mesas, um cliente que havia reparado nos seus ferimentos anteriormente, resolveu perguntar a ele o que havia acontecido.
“É que eu luto, senhor”, respondeu, sem graça e muito timidamente.
“Luta? Como assim? E como os ferimentos desapareceram tão rápido?”, insistiu o cliente.
“Sou lutador de vale-tudo. Eu uso maquiagem pra esconder os ferimentos. Mas hoje um colega faltou e eu não tive tempo de retocar.”
“Mas que história! Você estava todo arrebentado! E por que essa demora hoje?”
“Um colega faltou. Assassinaram o filho dele.”
“Estão demorando demais. E é muito ruim ver alguém machucado desse jeito...”
“Me desculpa, senhor. Preciso ir servir os outros clientes. Com licença.”
O maître já estava olhando zangado de longe e assim que o garçom se afastou da mesa, foi até lá bajular o cliente. Mas em vez de apaziguar a situação, tudo pareceu piorar. O cliente revelou parte da conversa que teve com o lutador: além das feridas expostas, da falta do outro garçom, também comentou - sem dar muita relevância - sobre o motivo da falta, o assassinato. Isso foi o bastante para o chefe se irritar ainda mais e, no inferno da cozinha, atacar o funcionário.
“Como você comenta com um cliente o que houve com a porra do filho do paraíba? Já não bastava a merda da sua cara arrebentada?”, gritou o maître, dentro da cozinha.
“Ele perguntou. Só respondi. O menino era meu afilhado”, respondeu o garçom.
“Foda-se! O seu amigão, o seu compadre, faltou e deixou a gente aqui nessa merda. Agora volta pra lá e serve. E de bico fechado, porra!”
“O senhor não precisa falar assim. O menino era novo, morreu hoje. Vi ele na barriga. Vi esse menino nascer...”
“Mas agora vai ficar retrucando?! E se fazendo de coitado?! Boa coisa esse menino não tava fazendo pra morrer assassinado!”
“Diz que foi bala perdida, o menino era bom.”
“Deixa de conversa e volta ao trabalho! Já mandei! E fica com a boca calada no salão. Se não vão ser os seus meninos que não vão ter o que comer com o pai desempregado. Vai! Anda!”
Quando o causador de toda polêmica voltou pro salão, o maître continuou.
“Mas onde já se viu? Trabalha aqui, tem todos os direitos, salário mínimo, férias, folga semanal e se mete em lutas, pra se arrebentar todo. Isso aqui não é um ringue, não é um filme de ação. Prejudica a imagem do restaurante! Ninguém quer ver essa violência toda. As pessoas estão jantando, comendo, não vendo pancadarias. E são os clientes que nos sustentam, que pagam nosso salário. Tem aqui um trabalhinho fácil, entrar e sair com bandejas, anotar pedidos, coisa que qualquer um faz, e se mete em lutas, competições... E esse menino, filho do paraíba, boa coisa não era pra terminar assim. Pode escrever: boa coisa não era!”
De volta ao salão, o maître atendia os clientes, se desculpava, prometia que iria adotar todas as providências necessárias, repetindo, de cabeça baixa perante a elegante clientela, suas escusas e justificativas:
“Nunca mais vamos expor nossos clientes a essas cenas de violência.”
“Me desculpem. Foi algo inesperado. Não fiquem com a impressão dessa noite.”
“Isso não vai se repetir."
“Não haverá mais chance para que cometam de novo o mesmo erro.”
“Me desculpem. Já estou a par de tudo e prometo que não vai se repetir.”
“Um abuso e uma violência, eu sei, eu só posso pedir perdão aos senhores. Faremos tudo para resolver. Não vai se repetir. Foi um fato isolado, podem ter certeza.”
“Espero ter o prazer de recebê-los mais uma vez e provar que foi um fato isolado.”
“Lamento muito o que houve. Pode ter certeza de que não vai se repetir”, respondeu o outro, com a cabeça levemente inclinada para baixo.
Minutos depois variações desse mesmo diálogo se repetiram. Outros senhores elegantes reclamaram com discrição do que havia acontecido naquela noite. Repetiram-se alguns termos e expressões: “absurdo”, “imperdoável”, “ninguém quer ver”; acrescentaram-se outros: “não se pode permitir esse tipo de conduta”, “não se espera isso nesse lugar”, “uma verdadeira violência, um abuso contra todos que vêm aqui”.
As respostas às reclamações pouco variaram: o homem, afetando culpa e vergonha, se desculpava, prometendo que aquilo não iria se repetir.
A tragédia começou horas antes. Numa ligação rápida e chorosa, um dos garçons do luxuoso restaurante avisou que não iria trabalhar naquela noite. O maître insistiu, gritou, ameaçou demiti-lo, mas não conseguiu fazer com que ele fosse. Em seguida, fez várias ligações e tentou com todas as suas forças contratar um substituto de última hora e não teve melhor sorte. Não havia encontrado nenhum bom garçom disponível. E não era uma noite qualquer: era sábado, noite concorrida, com a casa cheia e o trabalho multiplicado.
A jornada de trabalho começou lenta, como costumava acontecer, e foi ficando intensa à medida que as horas passavam. No início da noite, poucas mesas: cardápios distribuídos, pedidos anotados, o vai e vem mais lento com as bebidas e pratos. No salão do restaurante, todos bem vestidos, a temperatura controlada, um ambiente confortável, agradável. Do outro lado, ultrapassando a porta da cozinha, suor, gritos, correria, calor.
Quem pudesse observar esses ambientes, talvez tivesse a ideia de que representassem o paraíso e o inferno; talvez o purgatório fosse a fila na entrada do restaurante. Mas são poucos os que podem ver todos esses ambientes, e menos ainda os que querem fazê-lo. O problema é que essa comparação não dá conta de explicar a relação entre o paraíso e o inferno: se numa versão religiosa há independência, aqui é o trabalho no inferno que cria o cenário paradisíaco.
O grande problema daquela noite parece ter sido a incapacidade de manter bem afastados aqueles dois ambientes. Foi como uma invasão do inferno no paraíso; como se uma das invisíveis criaturas inferiores que trabalha para sustentar o paraíso tivesse aparecido de repente com toda sua impureza, deslocada no tempo e no espaço.
Essa transformação foi lenta, apesar de contínua e implacável. O incômodo começou com a demora. O trabalho já era muito com todos os funcionários presentes; como estavam em menor número, piorou: os garçons não estavam dando conta dos pedidos. Braços levantados, caras e gestos de impaciência, reclamações, grosserias, cobranças. O maître foi ficando cada vez mais irritado; no salão, entre as mesas e os clientes, ostentava sua face servil mas, quando estava a sós com os garçons, explodia de raiva, chicoteava com a língua, ameaçando com demissão.
“Nem sonhem em parar pra beber água, parar pra ir ao banheiro, andem, rápido, tá tudo atrasado; suas lesmas! Querem ser mandados embora? Querem ir trabalhar em botequins? Querem ir prum muquifo qualquer, pruma espelunca qualquer?”, berrava o maître com os garçons, dentro da cozinha.
Um dos garçons estava mais tenso que os demais. Já havia pedido duas vezes para usar o banheiro; falou baixinho, disse que precisava muito ir. Porém, o chefe não quis nem saber, mal o escutou, disse que não, que ali não tinha nenhuma criança que precisasse ir ao banheiro toda hora e o mandou continuar servindo, correndo entre o salão e a cozinha.
Os clientes, embora irritados com a demora, se divertiam nas mesas. Bebiam, conversavam, comiam. Os garçons sempre ouviam apenas trechos das conversas das mesas.
“Você sabe que eu detestei aquele hotel que o Mário indicou? Que serviço horroroso! Decoração então nem se fala!”
“O Marcelo vai casar na mesma igreja onde casamos e a lua-de-mel eles vão passar na Tailândia, num hotel maravilhoso!”
“... muito bom, excelente, você não faz ideia. Tenho algumas garrafas dessa safra...”
“... sim, também não gostei! Quanto mal gosto! Deus me livre! Querida, eu tenho bom senso...”
Os funcionários seguiam apressados, embora não pudessem aparentar a correria, a pressão e a tensão perante os clientes. Os pedidos não paravam - pelo contrário, aumentavam, mais chamados, mais ordens, mais trabalho.
Para fazer os pedidos, os clientes ainda olham um pouco para os garçons; também na para pagar a conta. Mas na hora de serem servidos, é como se os garçons fossem invisíveis, é como se os pratos e bebidas flutuassem até as mesas. Mesmo assim, com esses olhares rápidos, muitas vezes apenas de relance, alguns clientes ficaram abismados com a aparência de um dos garçons, justamente aquele que havia pedido para usar o banheiro. O que causou tanto espanto foram as feridas no seu rosto e, olhando com mais atenção, também nas suas mãos. Esse garçom tinha manchas roxas na face, em torno dos olhos, feridas no nariz, nos lábios, no queixo; nas mãos, não era diferente.
Um dos clientes, daqueles mais antigos, frequentador assíduo do restaurante, comentou com maître sobre a aparência do garçom.
“Mas o que houve com aquele garçom? Ele está todo machucado.”
“Como assim? Machucado?”, respondeu o maître, surpreso.
“Sim, aquele garçom jovem, moreno, forte; ele está todo ferido; o rosto parece o do um boxeador derrotado. Infelizmente, um convite à indigestão... Até logo!”
O maître foi apressadamente atrás do garçom acusado, o interceptou na porta da cozinha e, quando viu seu rosto arrebentado, tomou um susto:
“Puta que o pariu! Você tá com a cara toda arrebentada! Um cliente já veio reclamar, e com toda a razão! Mas você não chegou aqui assim? Que merda é essa?”
“Eu luto; treino mma, participo de competições, vale-tudo.”, respondeu o garçon.
“Mas como eu nunca te vi arrebentado? Como você estava bem e agora tá assim todo fodido?”
“Eu uso maquiagem. Minha mulher passa em casa, antes de eu vir pro trabalho, e eu retoco aqui. Por isso que eu pedi pra usar o banheiro.”
“Mas que merda! Não acredito! O Paraíba falta e esse aí ainda tem que se maquiar... E o pior é que outros clientes devem ter reparado... Vai consertar isso logo!”
O garçom machucado seguiu pro banheiro dos funcionários. Se trancou lá com o estojo de maquiagem e foi cobrindo tudo que o suor expôs, todas as escoriações da sua última luta. O maître ainda socou a porta do banheiro para apressá-lo.
“Será que a estrela da noite precisa de uma camarim pra deixar a fuça apresentável?!”, gritou enquanto esmurrava a porta.
Em seguida, assim que acabou de se maquiar, o garçom voltou ao trabalho, indo pro salão servir. Quando se aproximou de uma das mesas, um cliente que havia reparado nos seus ferimentos anteriormente, resolveu perguntar a ele o que havia acontecido.
“É que eu luto, senhor”, respondeu, sem graça e muito timidamente.
“Luta? Como assim? E como os ferimentos desapareceram tão rápido?”, insistiu o cliente.
“Sou lutador de vale-tudo. Eu uso maquiagem pra esconder os ferimentos. Mas hoje um colega faltou e eu não tive tempo de retocar.”
“Mas que história! Você estava todo arrebentado! E por que essa demora hoje?”
“Um colega faltou. Assassinaram o filho dele.”
“Estão demorando demais. E é muito ruim ver alguém machucado desse jeito...”
“Me desculpa, senhor. Preciso ir servir os outros clientes. Com licença.”
O maître já estava olhando zangado de longe e assim que o garçom se afastou da mesa, foi até lá bajular o cliente. Mas em vez de apaziguar a situação, tudo pareceu piorar. O cliente revelou parte da conversa que teve com o lutador: além das feridas expostas, da falta do outro garçom, também comentou - sem dar muita relevância - sobre o motivo da falta, o assassinato. Isso foi o bastante para o chefe se irritar ainda mais e, no inferno da cozinha, atacar o funcionário.
“Como você comenta com um cliente o que houve com a porra do filho do paraíba? Já não bastava a merda da sua cara arrebentada?”, gritou o maître, dentro da cozinha.
“Ele perguntou. Só respondi. O menino era meu afilhado”, respondeu o garçom.
“Foda-se! O seu amigão, o seu compadre, faltou e deixou a gente aqui nessa merda. Agora volta pra lá e serve. E de bico fechado, porra!”
“O senhor não precisa falar assim. O menino era novo, morreu hoje. Vi ele na barriga. Vi esse menino nascer...”
“Mas agora vai ficar retrucando?! E se fazendo de coitado?! Boa coisa esse menino não tava fazendo pra morrer assassinado!”
“Diz que foi bala perdida, o menino era bom.”
“Deixa de conversa e volta ao trabalho! Já mandei! E fica com a boca calada no salão. Se não vão ser os seus meninos que não vão ter o que comer com o pai desempregado. Vai! Anda!”
Quando o causador de toda polêmica voltou pro salão, o maître continuou.
“Mas onde já se viu? Trabalha aqui, tem todos os direitos, salário mínimo, férias, folga semanal e se mete em lutas, pra se arrebentar todo. Isso aqui não é um ringue, não é um filme de ação. Prejudica a imagem do restaurante! Ninguém quer ver essa violência toda. As pessoas estão jantando, comendo, não vendo pancadarias. E são os clientes que nos sustentam, que pagam nosso salário. Tem aqui um trabalhinho fácil, entrar e sair com bandejas, anotar pedidos, coisa que qualquer um faz, e se mete em lutas, competições... E esse menino, filho do paraíba, boa coisa não era pra terminar assim. Pode escrever: boa coisa não era!”
De volta ao salão, o maître atendia os clientes, se desculpava, prometia que iria adotar todas as providências necessárias, repetindo, de cabeça baixa perante a elegante clientela, suas escusas e justificativas:
“Nunca mais vamos expor nossos clientes a essas cenas de violência.”
“Me desculpem. Foi algo inesperado. Não fiquem com a impressão dessa noite.”
“Isso não vai se repetir."
“Não haverá mais chance para que cometam de novo o mesmo erro.”
“Me desculpem. Já estou a par de tudo e prometo que não vai se repetir.”
“Um abuso e uma violência, eu sei, eu só posso pedir perdão aos senhores. Faremos tudo para resolver. Não vai se repetir. Foi um fato isolado, podem ter certeza.”
“Espero ter o prazer de recebê-los mais uma vez e provar que foi um fato isolado.”