Ó, traia, num carece di chorá!
Mutinga sabe de pouco. A bem dizer, pouco é o tudo que tem, beira do nada. Tem pouca roupa, pouca comida, a casa está na beira do rio, o marido era de pouca fé, não se fiou nela e enfiou o pé no mundo, e ninguém mais que soube dele. Até que os doutores vieram, veio um mocinho com um pedaço de papel, ela assinou, o compadre Chico a levou pra falar pros homens lá no tal de Fórum, eles disseram que ela ia ter pensão, isto é o que eles pensam, como se ela não conhecesse o Tonho, aquele miserável... Acabou que mandaram dizer que ninguém achava o Tonho, de paradeiro incerto e não sabido, ficou por isso mesmo. E vamos tocando.
- E vamo tocano!
Mutinga não sabe do Women's Lib, de algo chamado de trabalho e formação profissional, que este é o Ano Internacional da Mulher e, lá no México, as senhoras e madames fizeram e aconteceram. De nada sabe. Só sabe de sua roupa – e essa é muita – pra lavar na Fonte da Gameleira; do dia de apanha na casa de Dona Veva, Dona Renata, Tina do Chico Contador e da sua própria roupa – ué, roupa de pobre também suja – que de sua e própria propriamente nada tem, pois foi quase toda dada e tem até umas pecinhas que foram surrupiadas na casa de uma das freguesas, também elas têm muito, nem desconfiam, é gente rica... Mutinga sacode a cabeça, espanando fantasmas, mas o remorso é sempre um centímetro maior que a pobreza.
Mutinga sabe também que, a cada dia que passa, a água fica de menos na Fonte da Gameleira.
- Teve tempo que as bica tudo dava água. Hoje, até a mais grossa ficô ralinha, ralinha, tá saino só um tiquinho, um fiapinho, mais parece mijo de minino novo.
E o menino novo nas ilhargas, escarranchado, que cruz! A mala de roupa na cabeça, que equilíbrio! É a mais pesada das malas – como rico tem sujeira! – enquanto o menino é o mais leve e o mais novo dos oito. Tem até um que já está no terceiro ano do Grupo, tem só treze anos.
- É o mais véio. Se Deus quisé, inda vô vê ele formado. Gente sem o Grupo, hoje em dia, num vale nada. Num vê eu!
Olhe pra ela. A roupa rasgada, a sujeira, a barriga e os braços flácidos, no rosto amargor, revolta e pés-de-galinha, na boca a metade apodrecida do último incisivo, ninguém se aventura a dizer que Mutinga só tem trinta anos. Aparenta mais de cinquenta.
E lava mais roupa e esfrega mais pano e torce mais peça e bota sabão e bota no sol e põe pra quarar e toca a enxaguar e vamos secar. No gramado ralo e sujo, o menino mais novo brincando. Uma companheira avisa:
- Mutinga, óia o minino botano trem sujo na boca!
- Quá, u qui num mata ingorda!
Outra lavadeira, bacia na cabeça, grita de longe, ao chegar:
- Seu minino tá gordinho, Mutinga! A cara é ocê cortada! Qui gracinha, benza Deus!
Na verdade, o menino tem é barriga inchada. Nada de gordura. São vermes, disse o doutor. Mas cadê dinheiro pros lombrigueiros? Além desta, Mutinga tem um ror de outras perguntas. E, talvez de tanto perguntar e não ser respondida, seus traços estão secos, ela já não tem idade. Já não sorri há muito, e o amaro da vida já lhe carcomeu o restinho de alegria que teve, um dia, porventura.
Mas ao escutar o falar bem do seu menino, uma luz antiga que não a deixou de todo teima em reaparecer. E dir-se-ia que há doçura e ternura no seu rosto, o que ela logo repele, como se fora vergonha ser terna e doce neste mundo. E, como espantasse assim qualquer suave sentimento que insultasse sua amargura, larga o serviço, agita os braços e grita para a criança, embora mais pareça um grito pra si mesma:
- Ó, traia, num carece de chorá!
E as gameleiras se agitam, a água escorre, o mundo gira...
No avesso
Qual recepção?
- Qual destes vestidos você sugeriria que eu usasse na recepção de hoje à noite?
- Qual delas?
Hoje vou mostrar-lhe minhas pratarias
- Você, hoje, depois da massagem e do cabelereiro, estará ocupada?
- Acho que não.
- Então, vá a minha casa. Hoje vou mostrar-lhe minhas pratarias. Chá ou uísque?
(Jeddah, Arábia Saudita, 08/1975)