Um relato de experiência ou a reflexão sobre ele

Nada do que eu irei escrever aqui aconteceu de fato. O personagem é inventado. O narrador é um mentiroso. A mente recriou tudo após pensar no que aconteceu. Não está aqui o que aconteceu. Mas, está uma tentativa de captar poucas sensações do que pode ter acontecido. É como o lume dum fósforo aceso que ilumina um recinto escuro e frio. Sua intensidade é provisória. Sua iluminação é fugaz.

O Sr. Eulélio sentiu que precisava dar uma caminhada curta pelas redondezas para agitar o sangue e refletir melhor o que houvera lido, tanto na parte da manhã, quanto agora pela tarde. Desceu as escadas do prédio e saíra pela esquerda, rua que dava caminho para a Pça. 29 de março. Lembrou-se de que desde que se mudara para a região ainda não houvera caminhado efetivamente no piso daquela praça. Só mesmo a viu quando comprou mantimentos no mercado que havia bem em frente. Observou pessoas fazendo caminhada, correndo, levando seus cachorrinhos para um passeio, jovens namorando, mas somente distante, sem qualquer impulso ou necessidade de adentrar aquele pedaço do bairro. Ainda se sentia um estrangeiro por ali. Desta vez, passou por ela e constatou que se tratava de um bom lugar para passar alguns instantes, seja sentado num dos bancos ao lado do grande chafariz, seja para caminhar pelo gramado que a cerca.

Como sentiu que o clima estava bom, nem muito frio e nem chuvoso como havia sido nos últimos dois dias, resolveu então estender a caminhada um pouco mais. Passou por uma rua larga, na verdade uma avenida por onde os ônibus sanfonados vermelhinhos transitavam junto aos tubos que ficavam debaixo das árvores cabeludas e engraçadas que só tinha visto por ali. Logo mais, seus olhos se deram conta de que esse caminho iria desembocar numa das ruas que davam acesso a sua ex morada, prédio onde residiu durante alguns meses do ano passado. Lugar que não aspirava nenhum saudosismo.

Após alguns minutos, estava entrando pelo centro comercial da cidade e decidiu caminhar ainda mais, haja visto que não sentia cansaço. Uma satisfação interna de simplesmente caminhar por aquelas ruas tomou o corpo e a mente do Sr. Eulélio, após ter ficado trancado no quarto nos dias de chuva contínua e céu cinzento que acabaram de passar. Algo que não era raro naquela cidade. De modo natural, sentiu um certo prazer adquirido pela simples tomada de decisão de estender a sua caminhada e de observar uma vez mais a sociedade que fazia parte naquele momento de sua vida.

Passando pela praça conhecida como ponto da “boca maldita”, se deu conta de que aquelas pessoas que não tinham onde dormir e que ficavam a maior parte do dia fumando e conversando alto haviam sumido dali. O lugar apresentava um ar de novo. A quadra, agora, estava sendo ocupada por adolescentes com aparência de moradores da região. Jogavam bola tranquilos. Cadê aquele pessoal? Era o que ele tinha pensado. Como num passe de mágica retirou-se a “sujeira” e varrera para debaixo do tapete. Mas, onde estava o tapete? E a sujeira?

Os passos continuaram seu trajeto sempre em frente, agora no meio da multidão que se apressava para ir embora para casa, após o primeiro dia da semana de trabalho. Para os que trabalhavam. Para os que obedecem a rotina, a semana, o calendário. Ele não era desses. Não sentia nenhum desejo de dar a meia volta rapidamente. Por isso, resolveu seguir o calçadão até o seu fim e voltar por um caminho diferente.

Enquanto aguardava o sinal de pedestres ficar verde para atravessar uma via paralela bastante movimentada, deu uma olhada bem displicente e desinteressada ao lado. Viu mais próximo de si uma moça mais baixa do que ele, de cabelos vermelhos, com traços indígenas, de olhos verdes postiços, exibir um semblante cansado e desencorajador. Do outro lado, havia um senhor de bengala e boina, carregando uma pastinha de couro marrom bastante castigada pelo tempo, de olhar apreensivo no aguardo da liberação de sua travessia. Bem a sua frente, por imagens entrecortadas pela velocidade dos carros que corriam, percebeu uma pequena aglomeração de desconhecidos, composta por velhos, mulheres e crianças, que apenas buscavam o momento exato para darem continuidade aos seus caminhos. Quando o sinal, enfim, ficou verde, ele ainda levou alguns segundos para se dar conta do que deveria fazer então.

Alguns metros mais, o Sr. Eulélio sentiu o cheiro gostoso do cafezinho servido com pão de queijo numa das bancas do calçadão. Teve uma ideia inesperada de comprar alguns pães de queijo para levar para a casa e comê-los com o café meio amargo que costumava tomar no início de cada noite. Deixou para fazer isso quando estivesse bem próximo do retorno.

Chegando ao fim do calçadão famoso e contornando o prédio histórico da universidade federal, onde avistou jovens estudantes sentados pelos degraus jogarem conversa fora, decidiu que era o momento de dar meia volta. Parou numa das bancas próxima de casa e pediu seis pãezinhos de queijo. Ainda passou na lavanderia para pegar três calças e uma blusa que havia deixado no último sábado.

Em alguns instantes, raspava a cabeça do fósforo na caixa para acender o fogo que ferveria a água de seu café. Deu uma beliscada no pão de queijo morno. Comera e veio ligar o computador para relatar o que se passara nessas últimas duas horas. Aqui está.

Ou não. É o que pensou quando estava ainda lendo a antepenúltima página do ensaio de Raul Antelo sobre a ficção de Silviano Santiago. O relógio marcava 15:47h. Até agora nada do que tinha sido planejado para o dia tivera êxito. Precisava terminar a leitura daquele segundo ensaio do dia para a sua consciência se acalmar. Uma forma de dizer para si próprio que o dia havia sido aproveitado e que a pesquisa caminhava, ainda que lentamente. Pensava que tinha que ler pelo menos uma coisa útil para o objeto de sua tese durante o dia. Ontem foi o romance De cócoras, do Silviano. Hoje, alguns ensaios sobre a sua obra. Amanhã, quem sabe, algum texto crítico do próprio autor. Do autor que despertava maior interesse dentre aquela variedade inacabável de opções estéticas. Do cara que escrevia sobre coisas simples e escrevia simples para falar do complexo. Do sujeito que recuperava a noção de experiência na arte contemporânea sem qualquer ingenuidade de reconstrução autobiográfica de modo totalitário.

Resolveu escrever isso aqui, para se certificar de que havia captado alguma coisa do que lera desde as primeiras horas do dia. Não há nenhuma relação direta entre a caminhada do Sr. Eulélio no fim de uma segunda-feira pelas ruas centrais de Curitiba e as noções de escrita ficcional do S. Santiago. Mas, achou que seria melhor rabiscar algo inventado para falar de uma experiência do narrador-leitor dos outros, do observador da vida alheia no meio da miséria e da decadência da sociedade modernizada, do que sair de casa nesse frio para vivenciar um relato que sequer seria escrito tal como o foi efetivamente.

Acho que é isso.