A CAVERNA E A LUZ

ADVERTÊNCIA: Este pequeno conto, que se pretende grande, é uma obra de ficção inspirada em personagens reais, porém, com a narração de fatos e acontecimentos que nunca foram vivenciados ou relatados ao autor por quem quer que seja, tratando-se, tão somente, de pura fantasia e imaginação criadas por uma mente renitente.

A CAVERNA E A LUZ

O silêncio da noite atingiu Fabrício de forma contundente e inesperada. Por mais que percorresse os vários compartimentos da sua memória, até mesmo os mais longínquos e esquecidos, não conseguia lembrar de nada parecido. Caminhava indolentemente pelas velhas e conhecidas ruas do seu bairro, tradicional reduto popular da sua querida cidade berço, orgulhosa por preservar, pelo menos em parte, resquícios de um passado não muito distante, onde os casarios de paredes altas e coloridas, com pequenos alpendres nas janelas protruídas para calçadas de pedras ornamentadas e ruas de paralelepípidos irregulares e mal distribuídos, resistiam bravamente até hoje, apesar da inclemência do tempo.

Com duas ou três lágrimas que teimavam em querer sair de cansados e marejados olhos amendoados, de matiz escura, Fabrício mergulhava numa reflexão profunda: - será que mudei tanto? A auto indagação era pertinente. As imagens de um garoto feliz e despreocupado, brincando descalço e fagueiro por aquelas vielas, ruas e avenidas eram recentes demais para um desprezo natural da maturidade, que exigia-lhe uma seriedade e conspecção incompatíveis com sua formação e personalidade.

Nascido de uma família humilde por necessidade e simples por contingência, tinha nos genitores uma contraditória relação afetiva, com especial apego ao pai, homem tímido e de poucas palavras, mas que se revelava um verborreico e satírico personagem após algumas doses do precioso liquido destilado que costumeiramente ingeria ao crepúsculo das quentes tardes modorrentas e preguiçosas, ocasiões em que toda sua experiência e sabedoria afloravam oriundas do senso comum e de tantas e tantas vivências. Tal fato tornava-o muito querido entre os vizinhos e visitantes de além bairro, pois na condição de pequeno comerciante, era assediado pelos mais diferentes e curiosos tipos humanos criados por Deus pai todo poderoso, recebendo o apelido afável de Lalu. Fabrício tinha uma forte identificação com ele, desde sua postura frente às solicitações fundamentais da vida até seus mais corriqueiros interesses, como pelo futebol.

Já com a mãe, sua relação era de estrita conformidade com a rotina de uma relação materno infantil tradicional, visto que os encargos e obrigações domesticas e maternais caiam-lhe pesadamente nos ombros, não podendo contar com Lalu para nada mais que os parcos recursos financeiros que este lhe repassava e uma tênue ajuda no acompanhamento e educação dos dois filhos. A vida dura e sofrida esculpiu-lhe, superficialmente, uma frieza cortante, tratando as pessoas e as demandas do cotidiano de forma seca e aparentemente rude, mas que apenas servia para encobrir uma sensibilidade e delicadeza de rara intensidade, porém perigosas para manutenção de sua sobrevivência e a dos seus em tempos de exacerbados egoísmos e individualidades. Fabrício herdava, ou mais que isso, furtava da mãe essa característica de personalidade.

Apesar de pouca, a diferença de idade com o irmão mais novo dificultou uma convivência que já era distante em decorrência das singularidades comportamentais de cada um, pois durante a fase infanto- juvenil, o gradiente de alguns anos equivalem a quilômetros de distância na compatibilidade de valores e interesses. Realmente eram diferentes em quase tudo, assim mesmo, talvez movido pelos laços umbilicais ou por uma imperiosa necessidade de protegê-lo, advinda de um inexplicável e incômodo sentimento de co-responsabilidade paternal, acompanhava com interesse, porém discretamente e à distância, os passos, algumas vezes vacilantes e equivocados do caçula, que diferenciava-se dele pela falta de uma perspectiva de vida imposta por contingências pessoais e externas adversas, conferindo-lhe uma suposta imagem de fraqueza e vulnerabilidade.

Fabrício, no alto da sua percepção sapiente, sabia que as coisas e coisidades relativas ao irmão eram bem mais complicadas, envolvendo não somente as circunstâncias pessoais e familiares, mas também e principalmente o meio social perverso, hipócrita e implacável na procura de ¨canos de escape¨ que absorvam e armazenem toda a podridão de uma sociedade alicerçada na inautenticidade existencial e falsidade vulgar.

O tempo germinal de Fabrício decorreu sem maiores sobressaltos ou acontecimentos que marcassem profundamente sua escalada pessoal ao mundo das formalidades sociais, principalmente ao nível educativo e laboral. Os dias se sucediam numa sequência automática, quase que imperceptível, como se não existisse passado, presente e futuro. Somente o momento tinha validade temporal, estando inserido nos limites do seu espaço vital, um universo marcado pelas fronteiras imaginárias que continham as estruturas essenciais do seu desenvolvimento e aprendizado... a sua caverna.

Desde tenra idade era visto como ¨boa praça¨ pelos conhecidos, colegas de ocasião e familiares mais distantes, entretanto evitava maior aproximação com quase todos, criando obstáculos que dificultavam o esforço deles na procura de uma amizade mais duradoura, dificuldades muitas vezes invisíveis, que serviam apenas para justificar o comportamento arredio, igual ao da mãe. Teve oportunidade de conviver cada fase da sua vida com pessoas a quem tinha enorme apreço.

Lembrava sempre com carinho dos tempos de peraltices, quando empinava pipas, empurrava pneus usados com pedaços de galhos, atirava em passarinhos com estilingues, apertava a campanhias das casas alheias para logo em seguida se esconder, reunia com a turma para sessões de masturbação coletiva pensando naquela empregada doméstica que todos tinham como sua musa sexual, fazia competições de cuspe e mijo à distância, ir aos cinemas para molestar as meninas e flatular no escuro e tantas coisas do gênero.

Frequentou a escola como se fosse um náufrago, mas que sabia exatamente para qual ilha nadar. Trabalhou com Lalu como se fosse pródigo, mas que sabia claramente se tratar de um meio. Rezou e venerou como se fosse sólido, mas que sabia a que transcendente recorrer. Namorou e transou como se fosse o máximo, mas que sabia humildemente seus pontos fracos. Brincou e dançou como se fosse um bêbado, mas que sabia a hora certa de voltar pra casa. Chorou e soluçou como se fosse o último, mas que sabia da efemeridade do sofrimento. Sorriu e gargalhou como se fosse um príncipe, mas que sabia das angústias que o atormentavam. Sentou e descansou como se fosse sábado, mas que sabia das lutas que iria ainda travar. Finalmente adormeceu... e sonhou.

Despertou atrasado no primeiro dia da concretização de um dos seus sonhos. Ainda não acreditava ter logrado aprovação num dos mais difíceis e concorridos concursos de acesso à universidade... o da faculdade de medicina. Apresentava uma ansiedade comedida e uma incrível sensação de satisfação interior e auto- confiança, que já era uma condição inata em seu estado de espírito, contudo, tinha superado todas as expectativas de possíveis fracassos ou mudanças forçadas de projetos de vida.

Era considerado um bom aluno, mas nada que chamasse a atenção ou interesse dos professores e colegas de curso, a não ser pela atitude decidida e gestos esteriotipados, a ponto de aguçar a curiosidade de algumas pessoas que queriam melhor conhece-lo, como no caso de um médico de nome diferente e comportamento diferenciado - Lucarélio, de natureza irreverente e despojada, que chefiava um dos plantões frequentados por Fabrício no período de estágio hospitalar e que teria, tempos depois, muita importância em sua vida, tornando-se mais que um colega de trabalho e profissão... um amigo.

Não era um homem bonito, porém tinha um ar misterioso e tímido que agradava o dito ¨sexo frágil¨, mas também as pessoas do mesmo sexo, assim como os bi e tri sexuais, talvez pela aparência andina, com feições delicadas, tez clara contrastada com cabelos negros e reluzentes, rosto com linhas e contornos marcantes e bem delineados, barba e cavanhaque por fazer, com um olhar levemente irônico e zombeteiro, apresentando fala mansa porém com gestos viris... ¨El condor pasa sobre os andes e abre as asas sobre nós¨.

O que importava naquele momento era sua condição de predador, impulsionado pela carga testosterônica inerente à sua idade e pela repentina elevação do status quo consequente ao seu ingresso na irmandade de Hipócrates. No início não tinha controle de qualidade, caçando qualquer presa que adentrasse seu território e ficasse em seu raio de ação, à mercê dos seus impulsos primitivos. Toda criatura exótica, esdrúxula, exuberante, graciosa, obesa, esquálida, temperamental, meiga e outras ¨qualidades¨, com ou sem predicados físicos e pessoais, sendo do sexo feminino, entrava para o rol das suas conquistas. Somente após alguns anos, depois de muitas decepções, prazeres desmedidos e experiências frustrantes, mas também enriquecedoras, tornou-se extremamente seletivo e rigoroso na escolha de parceiras para momentos luxuriosos.

Essas idas e vindas da paixão e da carne resultaram num acontecimento inesperado, porém conscientemente previsto, que iria mudar radicalmente sua visão de mundo e o modo de ser perante si mesmo... o nascimento da sua primeira filha. Surpreendeu-se como pai extremado e amoroso, assumindo a responsabilidade paterna que lhe era imputada. O casamento tornou-se um imperativo categórico em seu ethos de vida, mesmo não sendo com a mãe de sua primeira cria. Uniu-se a uma mulher forte, decidida, esforçada e culta, na medida exata de cada ingrediente exigido na formação da personalidade de uma esposa perfeita e exemplar, que incorpora valores fornecidos por regras sócio comportamentais impregnadas na memória coletiva de uma sociedade patriarcal.

Da união oficial vieram mais dois irrefutáveis argumentos para ratificar uma vocação paterna de característica ímpar estabelecida desde a fase embrionária, talvez hereditária, se considerarmos as similaridades com Lalu. Indiscutivelmente, tinha uma dedicada e forte ligação com os filhos, participando ativamente, conforme sua disponibilidade de tempo, das rotinas e necessidades relativas ao crescimento e desenvolvimento de ambos, que respondiam à altura dos carinhos e chamegos recebidos dos pais com uma educação esmerada e comportamento irretocável, mesmo para crianças de infindável energia.

Apesar de ainda novo, considerava-se um homem realizado e quase feliz. Deixava a vida leva-lo sem maiores preocupações, procurando vive-la de forma datilografada, como se fosse um processo burocrático e formal constituído somente de inicio e meio, ficando o fim para postergações permanentes. Tinha uma família devotada e equilibrada, formação profissional de bom nível com especialização em área médica de alta complexidade, excelente reputação entre os colegas de ofício, empregos estáveis e relativamente bem remunerados, amigos de fé e confiança, chegando a participar de duas confrarias de cunho informal criadas por companheiros de labuta, farras, desabafos e alegrias, com encontros semanais para descompromissados bate- papos e discussões literárias e filosóficas. Reeditou, juntamente com quatro parceiros e parceiras de empresa e ocupação, um movimento literário e anarquista de grande importância histórica conhecido como ¨Padaria Espiritual¨, o qual participava com o entusiasmo e a vibração de um calouro.

Por que então continuava com aquela enfadonha impressão de que algo lhe faltava para alcançar a tão almejada felicidade?

Como sempre fazia, procurou não se ater a essas questões de natureza existencial, continuando a viver com as sombras que se projetavam na caverna onde nasceu, cresceu e aprendeu a viver. Mesmo assim sua alegria era contagiante, sendo reverenciado entre os amigos como uma pessoa tranquila, justa, divertida e verdadeira. Funcionava como um amortecedor de atritos humanos ocasionados por choques de opiniões e vaidades, como o que ocorria na Nova Padaria Espiritual entre o inconsistente Lucarélio e um padeiro tipo bonachão, de olhar adormecido, apelidado jocosamente por Fabrício de ¨Farol Baixo¨, devido a uma ptose palpebral bilateral.

Era o único que tinha paciência com os maneirismos e comportamento lúdico - infantil da padeira Tubiba. Adorava frequentar festas, shows, apresentação de artistas e conjuntos musicais, teatro e qualquer outro evento cultural, tradicional ou não, que viesse a proporcionar diversão em alto grau. Quando não podia comparecer a algum festejo, costumava comentar com aquele inconfundível ar irônico e brincalhão: - tô me guardando pra quando o carnaval chegar.

Foi durante esse período que Fabrício conheceu Felizberta, a pessoa que iria preencher a lacuna que faltava em seu coração para que a razão legitimasse uma relação afetiva, sexual e amorosa de incomensurável dimensão e magnitude, incompreensível ao conhecimento sensível e cognoscente humano. Conhecer Berta foi um marco divisor na trajetória de Fabrício, que costumava demarcar sua história de vida em antes e depois dela.

Inicialmente não tinham maiores interesses pessoais nos inevitáveis contatos de trabalho, visto que ela exercia função administrativa num dos hospitais em que Bri (forma carinhosa como ela o chamava) prestava serviço, mas à medida que suas intimidades debulhavam- se mutuamente, a irresistível atração física impôs sua força como duas locomotivas que se encontram em alta velocidade, despedaçando toda e qualquer possibilidade de reorganização das estruturas formadoras de egos, que agonizam na areia movediça de um passado recheado de erros, enganos, acertos e lembranças que insistiam numa projeção permanente.

A meiguice e delicadeza de Berta, contrastadas com a determinação e objetividade no seu modo de proceder, impressionaram Fabrício, que logo ficou hipnotizado pela sua faceirice campestre. De uma beleza física adolescente, com feições graciosas e bem desenhadas, cabelos negros vastos e compridos, elegantemente assentados sobre um corpo abundante em curvas côncavas e convexas, Berta se orgulhava muito mais da sua capacidade profissional, cultural e intelectual.

Formada na área de humanidades, exerceu estratégica influência em seu amado Bri, apresentando-lhe obras universais de autores consagrados como o ¨Mito da Caverna¨ de Platão. Ao terminar leitura tão fascinante e profunda, Fabrício estremeceu involuntariamente da cabeça aos pés ao perceber, de imediato, a similaridade do texto com a história da sua vida. Compreendeu que, até aquele momento, sua realidade não passava de escuridão, cópias em forma de sombras projetadas e limitações de pensamentos e ações, como um condenado sem crime.

Com Berta entendeu que sua ascenção para a luz tinha ocorrida de forma insidiosa e desapercebida, talvez pelo ofuscamento inicial que não lhe deixava enxergar nitidamente, mas agora, ao sentir o calor e a segurança que só a luminosidade natural consegue proporcionar, tentou retornar, como no famoso texto, ao fundo da caverna, no afã de encontrar pessoas que lhe eram caras: amigos, parentes, parceiros, antigos amores e todas que conviveram com ele o início da sua aventura de vida, para tentar guia-los com segurança em direção à luz que tanto lhe fez bem... não conseguiu.

O silêncio contundente e inesperado daquela noite lhe fez ver que, se tentasse tal manobra, seria desacreditado, novamente preso e impiedosamente assassinado, morrendo a pior das mortes... a morte em vida.

Sem olhar para trás, continuou tranquilo e sem remorsos sua caminhada indolente, porém com passos firmes e decididos, pois já tinha com quem partilhar estrada tão tortuosa, sabendo, com precisão, qual rumo tomar, na certeza de nunca mais enfrentar a escuridão, afinal, agora ele era brilhante.

Julius Galeno

Texto publicado em 16 JAN 2006, no auge da Nova Padaria Espiritual. Renovo minha homenagem a esse maravilhoso casal de amigos, Roberta e Brilhante, padrinhos da minha filha Sofia, pelo exemplo de pessoas que fazem da amizade, do amor ao próximo, da justiça e da verdade, virtudes que permeiam naturalmente nosso cotidiano de vida.

Marco Antônio Abreu Florentino

https://youtu.be/VofYXCJyeTY

(As Rosas Não Falam - Cartola)