Um passeio daqueles

Nossos encontros com os irmãos Camilo dos Santos eram pouco frequentes, mas sempre de animada cordialidade. Com o Aurélio aconteciam mais, pois ele fora do corpo dirigente da fábrica de tecidos no Brumado, onde meus pais e toda a tiarada trabalhavam. Já com o Ildefonso esse acesso só se materializaria com a mudança nossa para Pitangui, a partir de junho de 1958.

Mais que a afabilidade urbana havia um elo de ligação com o passado, envolvendo parentesco. Vovô Velusiano Justiniano, um seleiro curvelano tivera o infortúnio de quatro sucessivas viuvezes antes de se casar com vovó, quando ele teria então seus quarenta e seis anos, e ela, tão-somente 14.

Das quatro falecidas esposas de Velu - como era mais conhecido - duas, ao que me consta, irmãs entre si, haviam provindo da família Camilo e, teriam morrido ambas em trabalhos de parto, sem contudo terem deixado progênie.

E nada obstante, talvez em razão de ser a Onça de Pitangui um lugarejo, a filharada de Velusiano e Inhana - a quinta esposa, que o sobreviveria - as relações entre as pessoas e famílias eram fortes e francas. E nesse contexto, quantas vezes não ouvi as tias comentarem atos, fatos e boatos relativos aos Camilo dos Santos.

Um tio de nome Zé Camilo era o mais mencionado nesse universo e, descendentes, chegamos a vê-lo uma vez pelo menos. Foi quando já residentes em Pitangui, ou ainda um pouco antes, fomos fazer-lhe uma visita numa casa bem central da cidade, situada na ponta do jardim triangular, onde por muitos anos o footing da moçada era passeio emblemático dos fins de semana, sobretudo.

E foi na era pre-footing nossa que chegamos à casa de Ti Zé Camilo. Magro, escalavrado, enfermo, sobre o leito ele nos recebeu com estoicismo incomum. Sentado, ele, alvo e não salvo de atenções, rolava uma garrafa d´água sob os pés, calçados de meias. Aquela cena nos marcou. O homem da garrafa e sua forma inabitual de a portar.

Não há de ter vivido muitos anos depois, pois a casa em que residia retornaria aos donos originais, um Senhor Gabriel Ribeiro e vasta família.

Se não fosse o arcanjo, Gabriel era um batalhador com sua fábrica de manteiga, terras cultivadas, e...bom, e uma perrada duns 12 filhos que precisava seguir seus estudos num centro maiorzinho, como era o caso de Pitangui em relação a Leandro Ferreira, uma aglomeração acintosamente descalça e desprovida até de mercado de trabalho.

Dos filhos de Ildefonso, tive duas colegas: Conceição, que comigo regulava comigo nos sete anos de idade, ao iniciarmos nossa trajetória escolar, e sua irmã um pouco mais velha, Cleusa que vi a pegar mais pra frente, mais alfabetizada e de faceirice abusada. Mas foi por um tempo de nada.

Tempo mais curto, mas bem mais curtido foi quando, em viagem de retorno para Pitangui, do Pará de Minas, na companhia de Tibebé, sem chances de pegarmos o ônibus que por aqueles anos andavam com a demanda sempre em alta, eis que surgiu o Ildefonso - um bancário já veterano, oferecendo-nos uma carona na sua Rural Willys.

Embora de poeira e pedregulhos, a visão da estrada foi divina e cor-de-rosa para nós, todos abaixo ainda dos 15 anos e loucos por viagem de automóvel. E se a prosa corria solta entre os adultos

Hoje eu não chamaria a Rural de automóvel, mas por nada recusaria um passeio daqueles.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 09/12/2016
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