A Cadeira da Calçada – Helena Antoun
Ela sempre tivera uma vida pacata e ordenada. Suas balas de coco eram inigualáveis a qualquer outra de qualquer outra cidade. Todos costumavam dizer que suas balas tinham poderes sobre a alma humana. Era comum, os moradores procurá-las no meio da madrugada, em busca de alívio para qualquer alegria às avessas: perda de amores, desgosto de filha, insônia – até mesmo o banqueiro da cidade, apelava para as balas quando os negócios não iam bem. Talvez por isso a região nunca tivesse precisado recorrer a qualquer tipo de ajuda, nem das igrejas, nem dos bombeiros, nem da polícia, nem da prefeitura. Tudo naquele povoado transcorria na mais santa paz, com a benção e a concordância das igrejas, dos bombeiros, da polícia, e da prefeitura, que não pouparam esforços em homenageá-la no dia de sua morte. Dona Bela das balas era uma mulher suave e firme, que trazia sempre a aparência de estar na cidade só de passagem. Suas mãos tinham a palmas marcadas pelas infinitas vezes que pegava a calda quente de açúcar e coco, para transformá-las nas deliciosas e prodigiosas balinhas. Não havia quem as experimentasse, sem que se tornasse consumidor fiel. A polícia militar, certa vez, mandou algumas delas para exame na perícia, temendo que ali pudesse haver algum tipo de narcótico. Encontram apenas açúcar, água e leite de coco, que era extraído diretamente da fruta pela própria Bela.
Suas tarefas diárias terminavam à tardinha, quando entregava os pacotinhos para serem levados a todas as vendas da cidade. Dividia a cidade em cinco partes e reservava um dia da semana para cada região. Aos sábados, Bela cuidava do jardim, arrumava a casa, preparava bolo e salgadinhos para o domingo, e saía para conversar com os vizinhos no portão de sua casa. Era uma mulher gorda, porém demasiadamente ativa. Nunca ouviram-na dizer estar cansada.
Aos domingos, depois de ir à missa bem cedinho, visitava algumas casas com o objetivo de pintar as unhas, cortar e pentear os cabelos de senhoras bem idosas. Bela sempre dizia: “É preciso envelhecer com boa aparência”. Talvez por isso, quando seus olhos resolveram parar de trabalhar, Bela, mesmo cega, era capaz de pintar suas próprias unhas com a perfeição de um artista. Bela apadrinhara duas crianças do orfanato, e cuidava delas como sendo seus filhos, apesar de nunca ter conseguido adotá-las, por ser uma mulher só, e por sua baixa renda.
Quando a idade chegou, e o diabetes levou-lhe a visão, Bela limitou suas tarefas apenas às balas, e sua produção era bem menor. Diariamente sentava-se à calçada numa cadeira de balanço que tinha a idade de seu avô, mas o viço de seus bisnetos. Nessa ocasião, ela fazia longos rolinhos, bem justos, de folhas de jornais que eram usados para acender fornos caseiros e aquecedores. Vendia os rolinhos em pacotes feitos de jornal contendo em cada um trinta unidades. O valor que cobrava por eles era quase nada, mas Bela se divertia com a transação por si só. Dizem que, inexplicavelmente, ninguém precisou usar o segundo rolinho, pois o primeiro nunca acabava. Aos domingos, sentada em sua cadeira, ensinava a criançada, que ignorava sua cegueira, a fazer roupas de boneca e pipas.
Numa bela manhã de junho, Bela não apareceu à porta, e todos já sabiam por que. A imagem daquela cadeira desocupada na calçada trazia aos olhos de todos a mesma sensação da mão quando busca, e não encontra, o relógio no pulso, e trazia ao coração a mesma sensação dos olhos quando busca o tempo num relógio parado. O povoado principiou os procedimentos de organização do funeral, antes mesmo da confirmação da morte de Bela. Na véspera Bela levantara-se da cadeira mais cedo dizendo: “Por favor, me dêem licença, pois me sinto cansada e preciso descansar”. Por esse motivo, quando não apareceu naquela manhã, todos já sabiam o que fazer. Logo nos primeiros dias ninguém se prontificou a retirar a cadeira de Bela da calçada, como se Bela fosse precisar dela a qualquer momento. Nos cincos dias que se sucederam aos primeiros, a cidade foi tomada por um temporal que mais parecia o choro de todos os anjos de todos os santos e todos os mortos. Preferiram, então, deixar a cadeira secar ao sol antes de retirá-la de lá. Nos cem dias seguintes ao temporal, discutiram sem êxito, onde guardariam a cadeira. Nos cem dias que seguiram à discussão, a cada tentativa de tirar a cadeira de lá, temeram toda sorte de mau agouro que pudesse suceder à retirada.
Então a cadeira permaneceu no mesmo lugar.
Já nessa época, muitos vinham pedir conselhos à cadeira, que respondia a todos através de uma espécie de código: quando balançava para frente, dizia ‘sim’ – quando balançava para trás, dizia ‘não’. As balançadas da cadeira tinham um efeito semelhante ao das balinhas, ajudava a todos nos impasses mais atormentadores. Nunca mais se falou ou pensou na retirada da cadeira. Ela já fazia parte da paisagem da rua da cidade e do mundo. A prefeitura mandou instalar dois bancos de jardim, um em cada lado da cadeira. Ali, encontros eram marcados, vendas de propriedades, casamentos e até partos. Numa manhã, uma galinha resolveu chocar seus ovos ali, na cadeira. Ninguém se atreveu a retirá-la, e dizem que suas unhas adquiriram um brilho como se estivessem pintadas. As quermesses da igreja eram todas feitas na rua da cadeira. Junto à cadeira, os meninos faziam pipas e as meninas acompanhavam fazendo roupas de bonecas.
Certa vez um bêbado tentou perguntar a cadeira os números que seriam sorteados na loteria. Por três dias a cadeira não balançou.
Todos entenderam por que. Bela sempre ensinara que o trabalho era o caminho para uma vida feliz e digna. A prefeitura decretou que estava proibido perguntar à cadeira qualquer coisa ligada a jogos de azar, ou a tentativa insistente de se prever o futuro, sob pena de prisão por subverter a ordem pública. A rua foi toda reformada para dar um cenário condizente com a respeitada cadeira. O botequim defronte, que pusera várias mesinhas na calçada e toldos protegendo do sol e da chuva, de modo que as pessoas pudessem almoçar e apreciar a paisagem da prodigiosa cadeira – havia sido todo reformado e, no domingo, houve uma festa de inauguração que começou com o café da manhã, só terminou à noite depois do jantar. Toda a cidade havia sido convidada a comer e beber de graça. À noite, o dono do estabelecimento ligou a TV que mandara trazer da capital e todos puderam assistir enfim, assistir à novela, que foi a atração naquela noite.
A festa acabou quando a TV foi desligada e todos, que haviam comido e bebido demais, foram para suas casas dormir sem reparar que a cadeira não estava mais lá.