Ladainha - Helena Antoun
Era quase sempre assim, ela avistava o seu “amado”, mesmo de longe, e - pronto! - era acometida por uma incontrolável vontade de molhar suas roupas íntimas, se esvaziando do líquido que seus rins cuidadosamente produziram. Em outras palavras, mijava-se toda. Nelma formava poças em torno dos pés, se contorcendo de tanto rir, enquanto procurava algum lugar para se esconder do seu príncipe encantado. As amigas sempre tentavam ajudá-la, buscando não dar a perceber que a conheciam, claro, mas sim que a encontraram em apuros e se mostravam solidárias.
Desde pequena, Nelma sofria desse estranho mal de se urinar, sempre que algo muito esperado estivesse por acontecer. Aliás, não só isso era estranho em Nelma. A moça, desde menina, guardava em uma caixa, milhares de recortes, e todos eles, sem exceção, eram da palavra “beijo”. Beijos de todas as fontes, tamanhos e cores. Quando as revistas, que sua mãe trazia das casas onde fazia faxina, escasseavam, Nelma se punha a desenhar, por tardes e tardes, centenas de palavras para sua coleção. Muitas vezes, chegava ao requinte de escrever com a mão esquerda, ou com a boca, para torná-las diferentes. Sempre que se despedia de alguém, ela ia à caixinha, pegava alguns “beijos”, e entregava à pessoa dizendo: “Leve alguns beijos, pois você poderá precisar”. Não havia um vidro sequer, ao alcance dos olhos de Nelma, que ela não limpasse, até que se tornasse imperceptível ao olhar humano.
Um dia, sua mãe levou-a ao médico, para entender o que havia de errado na cabeça da filha. No consultório, relatou os comportamentos estranhos da menina, desde a época em que o caçula largou o seio materno, e a igreja, que a família frequentava, recolheu doações, dentre elas, algumas latas de leite em pó. Na semana seguinte, Nelma amanheceu com um prisão de ventre de dias, que só a muito custo, e com a ajuda de dois talos de couve untados no azeite, resolveram o problema da menina. Foi então que descobriram a baixa nas latas de leite: três delas se encontravam vazias. Ali, se revelava o impulso, quase incontrolável, em Nelma de comer leite em pó sem água. Comer o pó às colheradas.
Dona Laura dizia ter começado se preocupar, desde esse episódio, mas que não era o episódio em si que a assustava, tanto que, sempre que podia, trazia um pouco desse leite da casa de suas patroas onde fazia faxina, junto com as revistas de onde a pequena recortava os “beijos” para a sua coleção. A bem da verdade, dona Laura nunca se preocupou isoladamente com cada um dos comportamentos estranhos da menina, até justificava-os: a mania de comer leite devia ser necesssidade do organismo, o leite é nutritivo; os “beijos”, por ela ser uma menina muito carinhosa, além de gostar de fazer coleções; a limpeza dos vidros, por que herdara da mãe a arte na faxina; a coleção de chapinhas de refrigerantes foi por causa da idéia infeliz do filho de 11 anos, Eraldo, que convencera a irmã de que o dinheiro do mundo acabaria, e que as benditas chapinhas seriam o próximo 'dinheiro', e desde aí a menina juntara toneladas delas, com o objetivo único de comprar um edifício cheio de leite em pó só para ela. Mas, quando dona Laura pensava que todos esses comportamentos estavam concentrados em uma única filha, isso a assustava demais.
Quando Nelma criou o costume de calçar os sapatos nos pés trocados, dia sim, dia não, mesmo achando que pudesse ser uma inteligente estratégia econômica da filha, para gastar igualmente a sola dos sapatos, dona Laura decidiu que o médico é quem deveria descobrir se a menina era doente ou não. E, mesmo à revelia do marido, arrumou a menina e levou-a ao doutor Josino, médico que atendia no fundo da farmácia da rua principal. Depois de ouvir o relato da mãe angustiada, doutor Josino calmamente explicou-lhe que crianças com a idade da menina possuíam um imenso mundo interior, e que nesse mundo havia toda sorte de coisas que os adultos não entenderiam, mesmo explicadas exaustivamente. Disse também que todos aqueles 'rituais' iriam desaparecer com a idade. Acrescentou que o problema de a menina urinar deveria ser tratado com tranquilidade, pois há crianças que de fato demoram muito para controlar o aparelho urinário.
Dona Laura saiu bem mais tranquila do consultório, e, sempre que alguém comentava qualquer coisa sobre os sinistros costumes da garota, ela respondia com a mesma frase: “com a idade, isso desaparece... são coisas de criança”. De fato, ela até colaborava com as manias excêntricas da menina. Numa festa junina da igreja, em que dona Laura se responsabilizara por uma barraquinha de docinhos, o preço do docinho era acrescido de uma estranha e sutil exigência: o freguês deveria escrever a palavra beijo num pedacinho de papel. Nelma ficou tão animada com a empresa que, à noite, quando chegou em casa, estava afônica devido à intensa divulgação que fizera da barraquinha da mãe. De tanto repetir “com a idade, isso desaparece... são coisas de criança”, dona Laura não se apercebeu que os costumes da filha, que eram ao todo onze, estavam sumindo um a um. A verdade era que muitos deles sumiam aos olhos de todos, mas não de fato. Nelma, conforme ia ficando mais velha, notava que devia ocultar seus hábitos dos demais, para que tivesse tranquilidade, sem ser alvo de chacota dos outros. Mas, quando se deparava com a palavra “beijo”, a menina não continha o impulso, e, disfarçadamente, destacava a página para, num momento mais propício, recortar e guardar mais uma peça do seu 'tesouro'. Com o dinheirinho que ganhava da madrinha (uma patroa de sua mãe que assumira as despesas com a menina), comprava uns pacotes de leite em pó, dos mais baratos, que só comia à noite, escondida de todos. Nelma manteve o costume de comer verduras, para “equilibrar os intestinos”, como dizia sua mãe, e beber muita água, “para fazer o milagre do leite”, como repetia o irmão Eraldo, se referindo à diluição do leite em pó no estômago da menina.
Dona Laura não media esforços em convencer a todos de que os antigos hábitos da filha foram, na verdade, muito benéficos, não só para a menina, como também para toda a família, e, numa ladainha cadenciada pela própria respiração, enquanto fazia suas tarefas domésticas, relatava os benefícios: “Come muita verdura, graças ao leite em pó”; “bebe muita água, graças ao leite em pó”; “não pisa torto, graças aos pés com sapatos trocados”; “os vidros da casa são tão limpos, o que virou orgulho de todos, e até os irmãos conservam essa boniteza”; “as cortinas de chapinhas são lindas, invejadas por toda vizinhança” (fazer cortinas foi a saída que Nelma encontrara para manter sua coleção do 'futuro dinheiro'), e a ladainha continuava... Mas, sempre que chegava na coleção de beijos, que já havia sido quadruplicada às escondidas, dona Laura parava, por não encontrar justificativa satisfatória, dava um suspiro, e dizia: “Nelminha sempre foi carinhosa demais, e seus lábios nunca conseguiriam dar todos os beijos que deseja”.
Nelma era uma menina muito bonita - sua beleza era forte e simples. Aos doze anos, havia sido aprovada no concurso para o colégio público de melhor reputação de sua cidade. Sua madrinha não media esforços para dar à menina, bons estudos e formação. Núbia, a mais velha das irmãs, que eram quatro, desenvolvera uma caprichosa habilidade na arte de corte e costura. Nelma se mostrava extremamente talentosa, quando, ajudando a irmã, desenhava na hora, à medida que as freguesas de Núbia descreviam, os modelos a serem confeccionados. As freguesas adoravam a menina, e, através dela, se divertiam, tirando e colocando mangas, golas e adereços nas roupas. Sempre que definia um modelo, Nelma pedia que a freguesa escrevesse: “Para Nelma, um beijo de ...”. Todo dia Nelma levava o rodapé dos modelos para seu esconderijo secreto. Só Núbia percebia em silêncio que a irmã mantinha esse hábito.
Dona Augusta, madrinha de Nelma, tinha muito orgulho da menina e de sua aptidão para o desenho. Aos treze anos, Nelma ingressava num renomado curso de desenho artístico, ministrado nas instalações do Colégio Salesiano. Núbia já ganhava um bom dinheiro com as costuras (as patroas de sua mãe eram quase todas suas clientes), quando decidiu abrir um precário atelier, nos fundos da casa, para noivas e enxovais.
Dona Laura iniciou as arrumações da casa para os quinze anos de Nelma. Os cinco filhos mais velhos já estavam, de alguma forma, encaminhados na vida; restavam apenas Nelma, de quinze anos, e Edivaldo, de treze. Animada com a renovação da casa, dona Laura só falava nisso, dia e noite. Foi por essa ocasião que Nelma se interessou pela primeira vez por decoração, decidindo assumir parte do trabalho, se ocupando de uma poltrona velha e com o estofamento rasgado, que seu pai usava desde que parara de trabalhar, devido a uma injeção mal aplicada que imobilizara sua perna direita. Seu Haroldo torrava amendoins, fazia paçoca e pé-de-moleque, que entregava nas vendas próximas, e também trabalhava com as vizinhas, irmãs Alaíde e Adelaide, enrolando salgadinhos e docinhos que elas faziam para festas de casamentos e aniversários.
Nelma recolheu uma infinidade de calças e pernas de calças jeans que Núbia mantinha no atelier, por ter sido um presente oferecido pela vizinhança, por ocasião da descoberta de sua aptidão pela costura. Com esses retalhos, Nelma desenhou peça por peça de uma forração para a poltrona de seu pai. A capacidade de criação da menina era impressionante. Logo, logo havia uma série de papéis com os desenhos, cuidadosamente calculados, das peças necessárias à forração. A poltrona seria forrada em jeans. Os bolsos das calças seriam costurados nas laterais, para que seu Haroldo pudesse colocar os óculos, lápis e papel, revistas e jornais. Com as pernas das calças, seriam feitos dois travesseiros cilíndricos, presos por velcro nas laterais do encosto, para que a cabeça não quedasse em demasia para os lados, durante o costumeiro cochilo do seu Haroldo. Na frente do braço da cadeira, usando o cós de algumas calças, ela fez um bom e seguro suporte para o porta-cerveja de isopor, que o pai usava à noitinha enquanto assistia TV. Ficou perfeito! Núbia fez caprichosamente a costura, e tudo vestiu como uma luva. A capa e todas as peças eram removíveis para lavagem. Ficou realmente muito bonito, e foi a primeira criação daquela que, anos depois, seria uma conceituada arquiteta e estilista de interiores, com Coluna em duas importantes revistas. A casa realmente ficou muito bonita.
A festa dos quinze anos de Nelma foi simples, mas bem farta. Seu pai trabalhara incansavelmente, enrolando docinhos e salgadinhos, que Nelma, sua mãe e as irmãs fizeram durante os meses que antecederam à festa. As irmãs Alaíde e Adelaide também, graciosamente, ajudaram no preparo das guloseimas, pois, sempre que havia festa, ambas renovavam a esperança de encontrar um 'bom partido'. Em toda a casa tinha bom gosto, simplicidade e estilo. Foi nesse dia que Nelma revelou à Raquel que mantinha sua coleção de beijos, e, tão logo pudesse, mostraria à amiga. Raquel era sua melhor amiga, e sobrinha de dona Virgínia, vizinha e madrinha de muitos dos irmãos de Nelma. Ao lado de Raquel, Nelma se sentia à vontade para revelar seus segredos e desejos, pois Raquel nunca fizera qualquer censura em relação à amiga.
Foi na festa dos quinze anos, a última vez que ambas se encontraram. A partir daí, se falavam por telefone, cada vez mais espaçadamente, e, quando Nelma foi fazer o curso profissionalizante de desenho técnico, em outra cidade, os contatos se tornaram mais raros ainda, e, na maioria das vezes, eram feitos por carta. Quando saiu da faculdade de arquitetura, Nelma já era estagiária de uma renomada revista de decoração. Seu projeto final fora premiado em três modalidades, além de ter sido publicado também em dez capítulos consecutivos na revista em que a moça trabalhava.
E ali estava ela - uma arquiteta bonita, competente, talentosa, mijona, com mania de comer leite em pó e colecionar beijos escritos. Por essas características excêntricas, Nelma acabava por se sentir uma ilha em meio a pessoas que interagem entra si. Uma ilha cercada de pessoas normais por todos os lados. Não fosse pela incontinência urinária, os demais hábitos poderiam ser contornados e até escondidos de alguém que convivesse com ela. Mas essa incapacidade de se manter seca em situações de expectativa impediu-a, até mesmo, de receber pessoalmente os primeiros prêmios de sua carreira. Nelma já havia tentado todo o tipo de tratamento com médicos renomados, mas todos foram unânimes dizendo se tratar de alguma reação de fundo emocional e, portanto, carente de tratamento psicoterápico, o que a moça não se negou a fazer, mas que também não deram resultados.
Foi quando, num fim de tarde, voltando do trabalho para casa, no assento do corredor de um ônibus lotado, foi surpreendida pelo grito de um rapaz de uns vinte anos informando a todos se tratar de um assalto, e empunhando uma arma de calibre trinta e dois. Nelma ficou estática. O rapaz estava a menos de um passo dela, e dava para sentir o hálito doente do assaltante. Num lapso de tempo, ouviu-se, vindo do fundo da veículo, a voz de um senhor de meia idade que se dizia policial. Neste momento, o assaltante olhou em volta, buscando alguém como escudo e passou os olhos por Nelma, que sentiu sua bexiga contrair e, imediatamente, retornar à condição normal, quando o bandido escolheu um rapaz de terno que sentava no banco ao lado. Naquele momento, Nelma se ausentou de tudo e penetrou num mundo totalmente seu e que, ao mesmo tempo, desconhecia. Viu toda sua vida passando pela tela formada pela traseira do encosto do banco da frente. Em menos de três segundos, ela era uma menina que chorava em sua cama, antes de dormir, por ter sido molestada por seu pai, enquanto o escutava falando com a mãe, sobre sua preocupação com a filha, que tinha a mania incontrolável de beijar a todos, e que isso poderia ser mal entendido. A mãe respondia que ela era apenas uma criança carinhosa, ao que o pai retrucava com o argumento irrefutável de que o mundo estava cheio de maldade.
Num retorno momentâneo ao interior do ônibus, Nelma lembrou-se de que, no dia seguinte, adquirira seu primeiro recorte de beijo do rótulo de uma lata de leite em pó. Sentiu uma imensa vontade de beijar o rapaz que estava sendo mantido como refém, quando a tela à sua frente, tornou a se abrir, e dessa vez trazendo a figura de seu irmão convencendo-a de que as tampas de refrigerante e cerveja seriam a próxima moeda em circulação, o que se tornou um bom pretexto para que Nelma fugisse para a rua, longe do olhar desconfortável do pai, a pretexto de catá-las. Novamente, de volta à cena do assalto, desejou ter todas aquelas chapinhas transformadas em moedas de ouro, para que pudesse tirar aquele rapaz de terno daquela situação desesperadora. Mas não conseguia fazer outra coisa, senão levar seu olhar novamente para o encosto de banco transformado em tela. Sentiu nitidamente a angústia, após ter sido visitada pelo pai, quando trocava de roupa para ir à escola. A opressão era tão aterradora, que a menina se impôs ao desconforto de calçar os sapatos nos pés trocados, para que pudesse concentrar sua atenção na desconsolação de seus passos, e fugir dos registros que se estabeleciam em suas lembranças.
Voltando à situação presente, Nelma olhava os sapatos do rapaz, e pensava em como invertê-los, quando viu uma poça de urina se formar ao redor dos pés do refém, que chorava como criança. Imediatamente, percebeu que ela mesma não estava se urinando. À medida em que a poça crescia, os olhos de moça subiam pelas pernas e o corpo do homem, até chegar ao rosto, que agora era o rosto de Nelma, apavorada e rendida por seu pai embriagado. Um estampido fez com que saísse de suas lembranças, e visse o assaltante cair ao chão, trazendo junto o rapaz de terno, que ainda chorava em desespero, ignorando os gritos e pisões que levava dos demais, que tentavam fugir, aproveitando o estado desacordado do ladrão. Nelma se jogou no chão junto ao homem que chorava, e, numa atitude de protegê-lo dos pisões, abraçou-o e beijou-o terna, profunda e longamente no rosto. O homem sorriu.