O Amigo e o Retrovisor – Helena Antoun

Mesmo sabendo que o número de passageiros em busca de condução aumentava generosamente em dias chuvosos como aquele, ele experimentava sempre um intenso distanciamento da vida nesses momentos. Tudo lhe parecia estranho. Seus movimentos e suas respostas ao mundo exterior eram acidamente autômatos. A cada braço estendido, à beira da calçada, seu estômago revirava diante da idéia de se ver obrigado a fazer um mínimo contato direto com o mundo vivente, ao menos para saber o destino da viagem. Sua vontade era circular solitário até que a chuva, ou o seu coração parasse - o que acontecesse primeiro. A rotina era sempre a mesma. Respondia ao cumprimento do passageiro com um meio sorriso que se confundia com um forte espasmo facial. Ouvia o endereço de destino como um cão que escuta os lamentos de seu dono, enquanto olha o trajeto das formigas no quintal. Assim que o carro entrava em movimento, se sentia seguro, graças a cumplicidade da paisagem que capturava o olhar do passageiro. Sua alma partia então em direção a algum lugar, que ele nunca soube bem onde era, mas que, quando voltava, trazia na boca o sabor dos séculos, e nas costas o peso de todas as palavras resumidas na voz do passageiro perguntando: “Quanto é?”.

Teria sido tudo exatamente assim se, naquele dia, seus olhos não tivessem passado rapidamente pelo retrovisor, antes que sua alma se retirasse para a habitual viagem. Como um soco no estômago, se vira prisioneiro da tempestade de imagens do passado que desfilavam, compondo, desde a infância, a imagem do homem que aparecia no espelho.

Sim era ele! Seu passageiro fora, durante muitos anos, o seu maior amigo, com que viveu as primeiras perguntas, sofreu as primeiras respostas, trocou abraços, socos, sonhos, segredos, namoradas, e que agora estava ali, no banco de trás de seu táxi, olhando para a rua com aquela expressão de antepassado.

E se quando o sinal fechasse, ele virasse para trás e repetisse a saudação que ambos costumavam usar quando se encontravam? O amigo entenderia? E se não se lembrasse dele? E se o achasse velho e acabado e infeliz? Decididamente não olharia para trás, não faria a saudação, não se deixaria descobrir pelo amigo, que agora mais parecia uma foto de jornal. Seria suficiente olhá-lo dentro do campo de visão que o retrovisor permitia. Buscou na memória a cena de minutos atrás, quando o amigo acenou para o táxi, em busca de sua imagem de corpo inteiro. Mas lembrou que, naquele momento, tentava suportar as reviravoltas de seu estômago. Nada conseguiria lembrar, pois nada havia visto, a não ser a ameaça da presença de um passageiro no seu carro.

As cenas de sua infância e adolescência passeavam de mãos dadas no pequeno espaço do retrovisor, que agora já era um imenso palco, onde uma vida de cem anos caberia.

Pelo visto o amigo estava bem... teria casado? ... com certeza estava em situação melhor que a de um simples motorista de táxi.... A vontade de abraçar o amigo tomava conta de seus braços. Talvez ele quisesse encontrar nesse abraço, a razão pela qual suas vidas se subtraíram pela distância, no tempo e no espaço. Ou talvez quisesse apenas abraçar o amigo e dizer: “Cara! Seria isso uma chance?”. Mas o amigo não sabia daquela motorista, com quem compartilhara toda a cumplicidade que uma amizade suporta. Será que o amigo ainda sentia o medo do assobio da ventania, acreditando ser chegada do ‘buraco do mundo’, como costumava dizer a portuguesa que vendia cocadas e pipas para criançada?

E se na hora de pagar a viagem o amigo o reconhecesse? Será que iriam pro “Bar do Bardo” tomar cerveja com limão pra evitar a gripe, por terem pego um temporal na volta de algum lugar? Ou será que iria apenas cantarolar as teimosas músicas que fizeram durante o desejo visionário de que um dia seriam um dupla de sucesso?

Pelos trajes, o amigo devia estar bem de vida e talvez não tivesse olhar para as lembranças... “Há amizades que não precisam de convivência nem, contato, se preservam por si só. Há outras que sucumbem, se não houver convivência... " Qual teria sido a amizade deles? Sido? Será que não era mais? Vasculhou a memória tentando lembrar a última vez que pensara no amigo antes que ele entrasse no seu carro há minutos atrás. Não conseguia lembrar, parece que o amigo sempre estivera ali exatamente como um espelho retrovisor, que a gente nem lembra que existe, a não ser quando resolve precisar dele e não o encontra.

Talvez fosse, aquela, a última chance de ele reencontrar o amigo que sempre estivera lá, e se ele deixasse passar nunca mais o reencontraria, e nunca mais ele estaria lá. Então seria melhor fazer a ‘familiar saudação’ ao amigo. Ou melhor, ele sorriria para o amigo. Sorriria em código. O amigo, com certeza, reconheceria, pois sempre que precisavam se comunicar em público sem que ninguém reparasse, usavam ‘caras e bocas’ que tinham, todas, significado próprio.

O endereço de destino estava chegando, seu coração parecia que ia saltar pela boca. Nesses últimos minutos percebeu o quanto tinha envelhecido e também o quanto se deixou envelhecer. Naquele instante se sentia um menino pronto para pular o muro da escola e jogar bola, ou um rapaz ansioso por entrar de ‘penetra’ no baile e dançar com a mais linda garota. Um desfile, cada vez mais rápido, de cenas da sua vida com seu amigo passageiro - passava por sua mente. Chegou a ouvir sons, sentir cheiros, sabores e texturas. Tudo, de uma vez só, se precipitava naquele momento. Despertou com a voz do amigo: - “É logo ali na frente. O prédio azul”.

Ele tinha ainda a mesma voz. E com certeza era muito rico (a valer pelo prédio). Talvez não valesse a pena segurar essa chance. Talvez não fosse uma chance.

– Quanto é? (Olhou para trás. Pegou o dinheiro)

– Pode ficar com o troco.

Ele também estava bem marcado pelo tempo... Não era o mesmo do retrovisor... Talvez não fosse tão feliz assim... Talvez não tivesse filhos...

Despertou para o mundo do nada com o som da porta batendo. E seguiu em círculos a espera do que parasse primeiro. A chuva ou seu coração.

No quarto do zelador do grande prédio azul:

- “Nossa meu filho, que dia de merda! Tomei um banho de chuva, tive que negociar meus vales-transporte pra poder pegar um táxi, e ainda peguei um motorista viado que me olhou o tempo todo pelo retrovisor, e quase me agarrou na hora em que fui pagar. Deixei o troco para ele e me mandei.”

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Meu Blog: http://www.memoriamarginal.blogspot.com/

Helena Antoun
Enviado por Helena Antoun em 22/07/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T575073