ATRAS DA PORTA
ATRÁS DA PORTA
Descobrira a sombra olhando pela fresta entre as dobradiças; a sombra era de um colorido difuso, sobressaía-se no lugar pouco iluminado, entre a porta e a parede.
Puxando-se a porta a sombra espremia-se como se fosse desaparecer... Mas era vista colada, no alto da parede junto ao teto.
Encorajou-se. “-Mãe, já viu essa sombra atrás da porta?”
- “Que sombra, menino?”- ela perguntou, puxando a porta, para ver o que havia por detrás.
(Ele viu, como de outras vezes, a sombra subir e alojar-se lá em cima.)
- “Ah, mãe, você mexeu na porta. Agora a sombra está perto do teto, tá vendo?...” Apontou a mancha evanescente que, por acaso, só ele via.
A mãe ergueu os olhos míopes para onde ele apontava.
-“Não estou vendo direito, como é essa sombra?”
- “È pequena, parece que tem uma asa. Parece asa de gafanhoto”.
- “Asa de gafanhoto! Você inventa cada uma... Vai ver que é um anjo que perdeu a asa...” - queria livrar-se do assunto de uma vez - (Esse menino é cheio de imaginação!)
“Que anjo ia perder a asa, mãe, e ficar atrás da porta? Quer me dizer?...”
“Um dos anjos de Deus que toma conta da gente...”
“Que coisa, mãe, você tá inventando essa história! Pensa que eu acredito? Deixa pra lá, esquece; mas EU vejo a sombra!” (saiu porta afora, irado, batendo os pés.)
A mãe voltou aos afazeres. Pensativa, prometeu-se conversar com o filho em outro momento. Ele fora criado sem pai, sem outros irmãos com quem conviver; era muito sozinho, vivia pelos cantos ruminado ideias... A ela cabia o dever de dar-lhe atenção, ouvi-lo, ainda que dissesse tantas tolices.
Andando sem rumo para espantar a raiva, encontrou o Delio, um menino que conhecera na rua. Muitas vezes armados com bodoques perseguiam passarinhos, pombos e rolinhas. Não havia bodoqueiro melhor que o Delio. Nunca errava um alvo. Aliás, ele era o melhor em qualquer coisa em que se empenhasse. Era o líder da molecada: um pouco mais velho que os outros, um ano talvez, sabia impor-se: tinha habilidades, mostrava-se seguro e bem informado. Trazia sempre um cigarro no canto da boca. Propunha esquemas, era um bom manipulador. Falava pouco de si, mas pelo jeito não devia obediência a quem quer que fosse.
Tinha um cabelo ruivo e basto, preso com um elástico, num rabo de cavalo. Seus olhos estreitos eram ladinos, perspicazes; sua sabedoria vinha das ruas; frequentava a escola esporadicamente e se vangloriava de não haver perdido um só ano, apesar dessa extravagância.
Não havia quem melhor do que ele escalasse muros e árvores, fosse mais veloz na corrida, soubesse escapar dos perigos, urdisse aventuras. A ele se podia dizer ou perguntar qualquer coisa. Tinha opiniões proprias que emitia sem receio, apesar de sua linguagem peculiar.
“Tu por essas bandas! – Delio admirou-se - “Que fazes aqui?”
“Tô tentando me distrair... Minha mãe não me entende...”
“Nenhuma entende... Pode contar comigo.”
“Pois, é... Cê sabe, Delio, eu vi uma sombra escondida atrás da porta, lá em casa. Chamei a mãe pra olhar... Acho que ela não acreditou e veio com uma conversa de anjo que toma conta da gente... Não aguentei de raiva e vim parar aqui.
“Calma, irmãozinho!” – Delio tirou o cigarro apagado dos lábios, (nem sempre ele o mantinha aceso) examinou-o rolando-o entre os dedos.
“Explica melhor, tô te escutando...”
“Pois é: Eu vejo uma sombra, assim meio colorida, atrás da porta, mas é quando a porta está aberta, pertinho da parede, entende? Se você mexe na porta, a sombra sobe e fica agarrada perto do teto.”
“Sinistro!” o outro comentou; recolocou o cigarro na boca, acendeu-o, puxou um longo trago, pensativo.
“Quanto à tua sombra lá, não vamos discutir...” Tirou o cigarro dos lábios, bateu a cinza, soprou a pequena brasa da ponta, num gesto teatral. “Vai, me explica: tua mãe é dessas que reza, frequenta missa e conversa com os santos?”
“É desse jeitinho assim mesmo.”
“Irmão, se ela diz que tem anjo em casa tomando conta, é por que tem... Tu trata de ficar calado, deixa passar. Gente assim como tua mãe, atrai essas coisa pra dentro de casa! Ai...Ai...Ai!
Ficaram ambos em silêncio.
“Vou andando...”, Delio despediu-se. Deu uns passos, parou de repente e assoviou chamando o outro que se afastava. “Oh, cara, um desses dia aí, vamo nadar na piscina dos ricaços. Tô montando o esquema no capricho! Pode avisá os outro se encontrá com eles”. Gesticulou em despedida e continuou caminhando.
O menino tomou o rumo de casa. A irritação se fora. Não saberia explicar como o amigo conseguira acalma-lo. Delio era assim, sabia convencer. Não discutiria com a mãe a sombra ou a presença do anjo. Encerraria o assunto, deixaria o tempo correr.
Seguiu seu caminho sem pressa. Pensava em Delio, com suas ideias aventurosas, seus conhecimentos avançados, seu jeito de ser livre e saber influenciar a todos os garotos que o cercavam.
O intento de irem nadar na piscina dos ricaços era um propósito de Delio, mas executar a façanha...
Penetrar a mansão, guardada por vigias e cães ferozes, na ausência dos proprietários; usufruir a delícia de mergulhar naquelas tentadoras águas... Um sonho impossível.
Entretanto, a utopia de banharem-se na fabulosa piscina cercada de repuxos, na mansão dos ricaços, era tudo que Delio desejava tornar realizável, para consolidar sua capacidade de planejamento e afirmar sua superioridade sobre os companheiros. Seus seguidores não titubeavam em aceitar suas sugestões de gazetearem aulas para irem ao parque andar de pedalinho e remar na lagoa.
Ele os iniciava na arte de uma boa conversa, na frieza de se apropriarem de coisas alheias, de se safarem de reprimendas e responsabilidades.
Em alguns sábados encontravam-se num galpão vazio e abandonado, que o Delio descobrira; tomavam cerveja, fumavam cigarros mentolados e aprendiam a jogar cartas, treinando toda a malícia dos enganadores.
Era comum nesses dias alguém chegar trazendo revistas proibidas, com fotos de mulheres nuas.
Numa dessas vezes, enquanto as revistas eram passadas de mão em mão, Delio fumava uma cigarrilha, sua segunda paixão, depois dos cigarros mentolados. Apoiado num dos cotovelos, observava a troca das revistas entre os meninos, entre risadas e sussurrados comentários. Delio usava nesse dia, uma touca de malha. Dela escapavam mexas de seu cabelo ruivo e encaracolado
O garoto, que surrupiara as revistas, ofereceu: ”Olhe as fotos, cara, vou ter de devolver elas hoje...”Delio tirou a cigarrilha dos lábios, ajeitou a touca sobre os cabelos revoltos, dizendo devagar com voz audível; “quando quero vejo ao vivo.” Pegou a revista que lhe fora oferecida , abriu-a na página do meio; sorrindo, pôs-se, displicentemente, a correr os dedos sobre a nudez espetacular da foto, imitando uma carícia.
Os comentários que fazia sobre si mesmo eram inesperados. Se a partir deles alguém demandasse fazer perguntas, fazia-se de desentendido. Essas informações esporádicas e não muito claras, deixavam transparecer que dirigia automóveis e que já dera tiros usando um trintaoitão. Talvez tudo não passasse da tentativa de mostrar-se maduro, causar impressão. Era possível que suas insinuações não passassem de bazófias e não de atos realmente praticados.
O menino seguiu à risca as instruções do Delio. Ouviu em silêncio os comentários da mãe sobre proteção divina. Aceitou sem discursão seus conselhos e advertências. Afinal ela merecia respeito; vivia trancada naquele quarto de costura trabalhando dia e noite. Só saia para umas poucas visitas ou para rezar na igreja.
Continuava vendo a sombra atrás da porta; havia-a aceito como uma manifestação de Deus, e era grato pela proteção que ela lhe dava. Afinal de contas dentro de casa reinava uma tranquila convivência; tinha ele a sorte da mãe ignorar totalmente o que fazia na rua.
Passaram-se semanas sem encontros no galpão, gazeios e outras malinagens.
Saindo da escola, encontrou Delio na equina, esperando por ele.
“Irmão, hoje vamos nadar na piscina dos ricaços.”
“Quem disse hoje? Não tava difícil?”
“Tava difícil, cara, mas o mano aqui resolveu a parada.”
“O pessoal tá de viagem? Como vai ser?...”
“Faz uns dias que tô espionando a área, jogando uns lero. O pessoal se mandou hoje cedo.”
“E os guardas, a cachorrada, como ficou?”.
“Levaram três com eles. Os grandões tão preso no canil, do outro lado da casa. Um vigia vem só de noite e solta as fera.”
“Tem certeza, cara? Não vai ter perigo?”
“Tu, não vai amarelá, agora que tá tudo garantido, num é mano véio?”
“Claro que não... e os outros?”
“Tudo avisado e de acordo. Duas hora tô lá esperando. Cada um vai por si. Nada de enturmação. Cês chegando eu explico o melhor lugar do muro pra escalá e adentrá a casa. Tu leva um short de nado e umas comilança. Todo mundo vai levá alguma coisa. Já tá combinado quem leva as cerveja e os mentolado.”
“Às duas horas então a gente se vê...”
“Duas hora em ponto e não te atrasa... Ah, cara, antes que me esqueça: Larga em casa teus anjo protetô, ou seja o que vive atrás das porta. Não quero Deus e seus milico metido nos meus negócio.”
O menino correu para casa. Ia pensando como convencer à mãe deixa-lo sair por uma tarde inteirinha.
Chegou de mansinho, atencioso. Comportou-se como a mãe gostava que fizesse. Sentou-se à mesa para almoçar, obedientemente, e fez a oração de graças sem que ela o pedisse.
Decidiu-se: “Oh, mãe, hoje tenho de ir, antes de duas horas, fazer um trabalho da escola, na casa de um colega. (Lembrou-se de uma observação feita pelo Delio: pra ser valorizado, irmão, te mostra superior!) Preciso ir, mãe, pois eu sou o MELHOR na matéria.”
Olhando os olhos da mãe ele percebeu neles o brilho do orgulho e da emoção.
Ela aquiesceu levantando-se da mesa: “Pode ir!”
Antes de recolher-se ao atelier de costura, abraçou-o, carinhosamente: “Vá com Deus, meu filho e capriche o trabalho.”
Esperou ouvir o ruído da máquina de costura para ter a certeza de que a mãe já começara a trabalhar. “Posso levar um lanche?” gritou da cozinha.
“Claro... Tem pão fresco na cesta, e carne cozida na panela. Embrulhe os sanduiches em papel alumínio.”
Caprichou nos sanduiches, escolheu no armário uns pacotes de biscoitos para levar; na geladeira, pegou umas Cocas. Arrumou tudo na mochila, já esvaziada dos livros que não seriam usados. Lembrou-se de colocar também a sunga para o banho de piscina.
Saiu pela porta da cozinha. Galgou a grade do portão e pulou por cima para não mexer na tranca. Olhou por sobre o ombro, confirmando que não seria seguido. De um salto ganhou a rua; irrompeu às carreiras e sumiu na primeira esquina.
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