QUANTOS ANOS VOCÊ TEM?
Carlos Pântico, aos cinquenta e cinco anos, quer renovar seu cotidiano a partir de seu saudosismo, quer recriar considerando o potencial dele, e de seus amigos, não admite a velhice entregue ao formalismo cultural que o tempo impregna aos idosos. Como poderia ter inspiração para uma vida autônoma? Independente? Ao mesmo tempo criativa.
Estando sempre entregue a perplexidade, lembrando-se das pessoas que com ele estivera no passado, um sentimento meio saudosista, ao mesmo tempo percorrendo com muita “criticidade”, com uma velocidade quase instantânea, uma imagem sobre a outra, é que fica a dissecar, e ver que muitos que com ele conviveu, foram essencialmente banais, e outros verdadeiramente excelentes. Isto não lhe podia parecer uma causa qualquer, tinha que ser primária, em relação aos conflitos de relacionamento, e a resposta à intensidade dos pensamentos sempre lhe endereçavam a uma duna de grande visual para o mar e por ali divagava como se estivesse no divã da própria natureza, a duna e um pé de carnaúba funcionavam como o sofá, e as perguntas ou observações vinham de interposições das imagens de canções, de frases ao longo do tempo, ouvidas e que estavam perfeitamente assimiladas, então era uma corrida de conexões, lembranças, desejos e vontade de abrir o coração a todos que ali parecessem fundamentar a causa primária de sua perplexidade. Pessoas que havia conhecido que tinham pureza e arte no viver, mas que precisavam todas serem revistas no divã que concedera a sua criação abstrata e psicológica, não necessariamente que as mesmas tivessem que vir até ao seu divã fisicamente, mas concebê-las a sua imaginação e permitir as imagens e diálogos interpostos por ele em situações do relacionamento que tiveram, lembranças firmes compactas e reais dando chance das mesmas responderem as suas insinuações, no imaginário absurdo, e por fim dizer em bom tom, afirmar, concluir que esta pessoa fora ou é uma pessoa desastrosa, ruim, me feriu, me bateu, sacaneou com fulano, e isso e aquilo e finalmente encerrar: não posso mais estar com você, ou ao contrário uma pessoa esplendorosa e que intenciona a convidá-la a participar de um ritual, ao redor de uma fogueira e conversarem cantarem e relatar o que mais apreciam pela oportunidade de se ter uma vida. Isto indiferente se a pessoa já fosse morta ou viva, e evidente que se já morta apenas seria citada, as ruins não se cogitavam em nada, a não ser no julgo dele próprio que era segredo certamente. Havia ainda as imagens da beleza da manhã ao sol nascer, e do sol ao se pôr e que lhe permitiam uma grande motivação de sim para a vida, no divã em cima da duna.
Sempre que tinha oportunidade, que eram poucas, de ir até o local, quase três horas de percurso, duas de veículo automotor e quase uma de barco, andava com passos lentos as ruas que davam acesso ao local, e fazia isso, cedo da manhã ou próximo ao pôr do sol, fim de tarde, e quando iniciava a subida a duna sentia uma sensação de paz impressionante, as pessoas que por ele passavam ao seu trânsito, sentia delas ternura e isso o fazia perseguir este ambiente.
Depois de muitas lembranças e de zelo às visões, considerando que todos poderiam ter sido assim e tal, resolveu fazer um encontro e que lhe saiu caro, pois teve que providenciar quase tudo para o evento. Entendia que todos estão sujeitos a transformações, não estava cego a dinâmica cultural das pessoas, mas analisava também e sobretudo o psicológico, e isto era um exercício de fidelidade as amizades, assim pensava, não tinha ardor algum de julgo para sentenciar, ao contrário era uma situação imaginária para validar o que de bom tinha passado e passava em vida.
Finalmente estava no Divã com os amigos, depois de muito esforço. A fogueira acesa com lenha nativa (pedaços de estacas, galhos bem ressecados de arbustos), vinho conservado gelado em uma caixa de isopor com gelo, farinha, peixe fresco e alguns temperos.
A noite já estava se anunciando no céu, os raios solares eram os últimos. Ele os amigos, um violão e no ar já se sentia o cheiro de lenha em queima. Um dos amigos, Luciano, pessoa magra alta cabelos longos conservados a sua moda de jovem, arriscou em perguntar:
- Por que você não convidou Anita pra estar aqui conosco?
Pântico, a pessoa principal deste relato, o mentor do encontro, pensou rápido, e antes de externar refletiu consigo, para atenuar sua exclusão, não querendo parecer inconveniente, que ela havia sido eliminada pelo excesso de petulância e vaidade, sentenciou:
- É que ela está de romance novo e seu novo bem querer não navega de catraia, como ela mesma disse, só de iate, e já foi difícil eu arranjar este pequeno bote... E finaliza (pensa consigo antes que não deva dizer por que as pessoas são aquelas, ainda assim sutilmente se trai) – Ora todos vocês devem entender porque aqui conosco temos Luisinho canhoto, sei que é trabalhoso transportá-lo, mas vejam não tem nenhum trejeito da formalidade que normalmente o tempo traz a velhice que nos abate, está ali pronto pra tentar tocar no seu violão, ainda que vá tateando os trastes.
Catarina aos quarenta e cinco anos, conservando traços de uma mulher elegante e sensual se interpõe:
- Ora, que adiantaria ela estar aqui conosco, só sai daquela boca, à noção de bonito e feio, parece uma eterna adolescente, longe de ver o que a vida tem mais além, logo satura qualquer um. E quanto a você Luciano, gostaria dela aqui só para ter uma chance de um bem-bom com ela, mas vir aqui não é só para isso, e onde caberia tanta arrogância?
- Espere aí, está me parecendo que estamos aqui reunidos nos vendo como, alguém é bom alguém é ruim, ou como alguém é herói, porque teve uma atitude corajosa, ou coisa que valha, vamos parar com isso, disse Luciano.
-Bem, me surpreendo com o que você fala, e preciso ser sincero, eu realmente convidei a todos nós aqui, por afinidade é um direito meu, e acho que não precisamos ser deselegantes, porque um ou outro não veio, foi só para tudo ficar mais criativo, não venha dizer Luciano que você não tem preferências, quando sabemos que muitas vezes enfrentamos situações ridículas ou mesmo de risco por proximidade de pessoas impróprias ao bom convívio. Ademais não estamos aqui reunidos por um propósito especial para discutir uma pauta qualquer, longe disso, mas para termos um dia bacana, valendo claro tudo de nossa espontaneidade, estou rompendo com tudo, com os vínculos de qualquer condição social, pensei profundamente no psicológico, a partir de recordações belas que trazem saudosismo.
Teófilo, o mais desolado de todos, o mais jovem, quarenta anos, a calvície tomando de conta, olhos claros, não abre mão de usar boné, interpõem-se ao grupo:
- Bem sei que sou o mais novo aqui entre todos, acho louvável o Carlos Pântico nos reunir, para cantar, conversar, ver a beleza deste lugar, ter a aventura de chegar até aqui num lugar de pouca badalação, um povoado de pessoas bacanas, só tenho que agradecer. Mas eu tenho andado perplexo, o tempo vai batendo e a gente vai tendo as notícias, que fulano está doente, que cicrano pirou o que beltrano morreu. Como se explica que aquele ator famosíssimo se matou, tudo parecia ok, só sua idade que estava esticada. E o Oscar Niemeyer? Acho uma das figuras renomadas de nossa contemporaneidade mais serena com a velhice, disse que este estágio de vida é uma merda, então o que há?
- Bem já que você tocou no assunto, eu quero dizer que é quase um pesadelo, as pessoas vão perdendo qualquer interesse pela gente, ou seja, quando se vai avançando no tempo, a sociedade que vale, é a da juventude e a da meia idade, depois é só declínio, ainda que a gente sinalize pedindo socorro, não adianta, penso que a população do mundo, nesse tempo de hoje, 2013, por ter se aproximado a cifra dos 8 bilhões, fez com que os da faixa plenamente ativa, que citei, se tornem soberbos, a boa forma os torna autossuficientes, eternos enquanto durem e que nós precisamos nos reinventar ou estaremos ferrados, a medicina tem que evoluir para também nos dar chance em todos os sentidos, e esse ator que o Teófilo comentou que se matou, não foi outra, é a nulidade que estão colocando aos idosos. Disse Catarina.
-Oi, um instante da atenção, Luisinho Canhoto quer falar. Disse Pântico, o anfitrião da duna.
-Bem, não é que quero falar, não é bem isso, desejo é tocar e cantar, não sei se consigo... e ao som de seu violão cantou: felicidade foi embora e saudade no meu peito ainda mora e por isso que eu...
Algum tempo depois, Pântico, se levantou foi até onde estava aconchegada Catarina, deu a mão para ela e levantou-lhe, andaram alguns passos e falou:
- Veja que coisa linda: o clarão da fogueira, os arbustos acolá, ao nosso sul, e a lua que apesar de minguante ainda se nota.
- Isto basta?
- Caro que não, faz parte, mas você é o grande motivo.