Sob Vara, Condução Coercitiva
A primeira condução coercitiva, ou seja, sob vara, de meu conhecimento, não tinha metáfora alguma. A condutora era Vovó Abel, com vara de marmelo, que nunca foi oficial de justiça nem policial federal. Os filhos e sobrinhos foram nadar no córrego da Olaria, sem permissão – e o pior – matando aula no Grupo Velho. Vovó Abel largou de arear as vasilhas, que esse dia, definitivamente, não serviriam de espelho pra ninguém. No comum dos dias, ficavam tão brilhantes no jirau que ofuscavam ao sol. Nesse dia, sangue nos olhos e fogo nas ventas, arrancou um galho do marmeleiro e partiu ao encontro dos delituosos. O mais levado era o de cabelo vermelho, o Canarinho, bom de briga e agente provocador. Em vez de algemados, os quatro fora-da-lei da época tiveram de passar pelados pela praça, sob pena de levarem umas varadas na frente dos conhecidos, que, por não adivinharem o futuro, não sabiam que se tratava de bancários, funcionários públicos, comerciantes e contadores em formação. Era a lei da época.
Naquele tempo, os oficiais de justiça suavam muito e o suor marcava seus paletós nas axilas. Ou subacos, como se dizia, possivelmente eram fedidos. O dinheiro do salário não proporcionava mais de um paletó por vez, só podiam variar as calças, que eram duas: sujou hoje, lava amanhã, veste de novo depois de amanhã, lembrando sempre que tem que guardar uma pra domingo, pra missa. Nem a do trabalho nem a da missa podia ser remendada, situação que as colocaria na classe de "roupa de pescaria". Imagina se tinham então para comprar leite de rosas ou outro qualquer produto como desodorante. A solução era fabricar o próprio, com água, limão e bicarbonato, que também servia de repelente na beira dos rios, durante as pescarias. Nessa hora, os funcionários de terno e gravata se transformavam em pescadores, em mangas de camisa. Raros momentos de lazer, lazer era mesmo luxo, se dos pais de família não se esperava muito mais que serem provedores.
Saíam cedo para os mandados, podia ser sábado ou domingo. Intimavam réus e testemunhas por aquele mundão afora, a cavalo, de jardineira, de trem, de carro de praça ou até a pé. Grotões a vencer: Cavalão, Prata, Saco, Leandro, Ponte Alta, Brejo, Antúrios, Entojo, Tõe Custódi, Maravilhas, Piqui, Campo Grande, Riacho de Areia, Vargem Grande. Mas não era nada pensando nos salários, que não eram generosos e quase sempre pagos com atraso. Uma vez ficaram seis meses sem pagamento. Sem queixa, iam aos agiotas, esses matreiros e cordiais, trocando cheques a dez ou vinte por cento. Não tinham saída. Mas, para o comum das gentes, eram ricos, pois, mesmo tardando, um dia aquele pouco pingava. E não tinham serviço obrigatório no sábado, a diferença entre eles e os pobres outros mortais.
Barros, Tavares, Fonseca, Megale e Gonçalves tinham famílias pra tratar e todas as dificuldades do mundo. A seu favor, talvez, só a sombra dos juízes, que mandavam e desmandavam até quase como Deus no céu. Ninguém dizia assim, mas desse poder dos magistrados emanava o deles: tinham poder de condução coercitiva, sob vara. Pelo menos, a gentalha tinha medo.
Às vezes, tinham escolta de um praça ou dois, conforme o intimado, que podia ser até assassino confesso. Geralmente eram pobres coitados, arruaceiros, beberrões, por isso mesmo com muito pouco a perder. Estafadores não eram presos, eram simpáticos e se vestiam melhor que a maioria. A gente comum tinha até pena deles. Agrediram? Mataram? Não, só estafaram ou desviaram dinheiro público. Não, essa gente não podia se misturar aos assassinos, beberrões, aos violentos. Quem vestia terno e gravata não representava perigo, jamais iria sob vara. Seria uma humilhação.
Barros era o mais experiente. Um dia, foi intimar um ladrão de votos. Curioso, perguntou:
- Quem te mandou fazer isso, rapaz?
- Foi o coronel. Mandou tirar do lombo do burro as urnas do Cavalão e trocar pelas nossas, com os votos do deputado, depois de cruzar o Riacho de Areia.
- E isso não é errado? Acho que não.
- E como foi? Algum praça ajudou?
- Ajudou, mas tava à paisana.
Babaxu era um dos eternos fugitivos, que ninguém conseguia intimar. Matou com uma pedrada na cabeça o violeiro, fanfarrão da Zona, que se embeiçara de sua rapariga e, por isso, andava agora de um lado a outro, dormindo na Serra, ao relento. Falta de respeito. A moça era como sua segunda mulher legitima, até sua mulher de verdade a respeitava, falava com ela até lhe mandava alguns bordados pra fazer. As duas eram, por assim dizer, quase sócias de marido, precursoras do poliamor, conceito que ainda não existia na época. O fanfarrão não respeitou e ganhou seu merecido
No cartório de Fonseca, depois do inquérito policial, ficou guardado o tamborete manchado de sangue onde o camarada se assentava para tocar, quando foi agredido. Fonseca mostrava a todos a pedra, de uns cinco quilos, e o tamborete verde. O tamborete da Zona, com o tempo, virou parte da mobília do cartório e já ninguém se lembrava de sua espúria origem.
Tavares não deixava por menos, também tinha sua história. Foi intimar o gigante Gaspar, acusado de ter deflorado uma moça, uma miudinha, e voltou compadecido:
- Ele diz que ela andava com todo mundo, só ele, namorado, não levava vantagem. Quando muito uns beijinhos, no escuro, na porta da casa, na volta do cinema.
Na verdade, cidade pequena, inferno grande. Iludido pelos ditos populares, pois todo mundo contava que tinha andado e conhecido biblicamente sua namorada, ele se sentia o próprio único bobalhão. Um dia, os dois namorando no caminhão, no Campo de Aviação, agarrou-a à força e foi assim que foi parar na cadeia. E ela era moça de bem, foi o que ele concluiu – e a perícia médica mais tarde também - ao ver o sangue jorrando de sua flor mais íntima.
Cada um tinha sua história. No cartório de Fonseca, todo meio-dia, se reuniam os advogados, oficiais de justiça, coletores e passavam aposentados, que, entre outras coisas, vinham saber das sessões do Tribunal do Júri da temporada. As sessões iriam virar festa na cidade, fosse para ser jurado, condenar ou absolver uma pessoa, ou só para assistir e ter assunto para a porta de casa, depois da janta.
Um juiz, um dia, chamou Fonseca para mostrar seu carro, uma camionete de luxo, quatro por quatro e um porta-malas enorme, onde ele guardava apenas uma espingarda. Foi daquele dia em diante que Fonseca passou a ter medo de porta-malas de carro de luxo.