Enganação

Houve uma quebra de acordo em algum momento.

Deus e eu.

Pela minha condição humana era óbvio quem tinha feito a besteira. Mas não fui eu.

Fiz tudo certo conforme sempre me pediram e tantas vezes me mandaram.

Repeti as frases, li os livros, decorei os nomes e segui todas as regras meticulosamente. Religiosamente.

E hoje, olho todo este tempo, todas as noites perdidas tentando controlar meus pensamentos, frear meus desejos, conter meus anseios na tentativa ridícula de me tornar um homem bom e tudo o que sinto é um gosto amargo. O gosto de quem se sente enganado ou, no mínimo, um fracasso absoluto.

E por quê? E para quê? As perguntas surgem na mesma proporção que tento afogá-las. Às vezes com o álcool barato reservado para abreviar minha existência, outras vezes, com pensamentos tão profundamente grotescos e instintivos que duvido da minha sanidade.

Mas não me julgue. Não olhe para mim como se fosse remotamente melhor do que eu. Você não é! A diferença entre nós é tão somente a hipocrisia.

Um dia olhei para aquilo tudo em meio a uma cantoria desnecessária de uma manhã de domingo.

Alguém falava sobre arrebatamento, alegria... Mas... Onde estava a minha? Não a achava, não a tinha há tanto tempo que passei a buscá-la onde quer que me fosse oferecida.

Um copo, uma garrafa, drogas virtuais, corpos descartáveis, drogas materiais. Um dia me vi envolvido em reuniões perigosas, casais disponíveis sob o mesmo teto, mesmo quarto, mesmas intenções. Aquilo era demais para mim. Fugi oscilando entre a raiva, a covardia, a curiosidade e é claro o subconsciente, me falando de queda e pecado...

No domingo, dobrei meu fervor, doei mais que meus 10%, pedi ajuda, ajoelhei com tantos outros no fim da manhã e me senti um pouco melhor. Assim descobri como fazer, encontrei o verdadeiro caminho, aquele que tira os pecados não do mundo, mas os meus e era o que interessava.

E repetindo mecanicamente a fala dos justos e aceitos no grupo dos escolhidos de Deus, seguia minha vida que oscilava entre a unção do domingo e a pornografia de todas as noites. Conveniência e aceitação. Tudo certo. Tudo dentro da lei. Enquanto ninguém via ou sabia, eu estava bem.

E foi exatamente em um destes dias de pedir perdão e me sentir um pouco menos canalha que a vi. Lembro bem do azul colado da roupa que tentava em desespero se fazer atraente.

Loira, excessivamente magra, três casamentos, um filho vivo, dois negados em clínicas clandestinas, negócios duvidosos, comportamento também... Eu conhecia a história. Mas tudo absolutamente tudo lavado com lágrimas de arrependimento naquela manhã ensolarada. E eu, tão decadente quanto ela entoava os mesmos cânticos de louvor e pedidos de perdão a Deus. O Deus dela, o meu também.

Tudo certo entre nós. Ela podia, eu queria. E sob a abóbada que ecoava a exaltação a aquele ser tão compreensivo, me vi muito leve, muito bom, muito aceito e é claro, com a alma limpa a custa do meu arrependimento genuíno e confesso, totalmente temporário.

O bom de seguir este caminho é que há sempre um novo começo, um outro domingo, mais compreensão e portanto, um flerte seguro com a impunidade ou ao menos, com a constante possibilidade de extinção do erro.

Nada me agradava mais. Nem mesmo o sorriso promissor dela que há muito perdera a beleza, se é que algum dia a tivera, mas que, totalmente segura de seus duvidosos dotes sedutores, se oferecia disfarçadamente entre uma frase e outra do sermão.

Avaliei as possibilidades mais por curiosidade que com intenção.

Estávamos em um lugar onde a luxúria era combatida desde a saída (e até mesmo) a entrada do paraíso. Se aquela companheira de fé, ora se insinuava, talvez fosse por ver em mim um porto seguro, um referencial ou quem sabe, apenas queria alguém para conversar sobre suas dificuldades espirituais.

Uma piada breve, uma tentativa vazia de torná-la uma mulher um pouco melhor e provar para mim mesmo que eu tinha algo a oferecer. Não tinha. Ela estava à caça, eu era a presa. Ou vice-versa, sei lá. Não importava.

E naquele instante, enquanto eu observava a faceta mais canalha de mim mesmo, ela surgiu como um jogo interessante, com suas calças pretas marcando os ossos dos quadris e o sorriso batido de muitas horas na estrada de suas conquistas.

Eu seria mais um, ela outra qualquer. Nada de mais sob o sol. Nada a dizer além das quatro paredes. A conveniência do jogo da sedução de casos passageiros, levianos, proibidos e justamente por isso com possibilidades de serem bons.

Havia ainda outro aspecto, a prova irrefutável de que eu era uma farsa, aquele lugar estava corrompido e que sim, as forças do mal estão em todos os lugares, até mesmo nos santos, porque neles, há gente como eu, como ela, como todos nós.

Falando francamente eu apenas aceitei os fatos.

Ela tornou a olhar para mim e a sorrir. Reparei nas linhas ao redor dos olhos. Marcas de expressão da idade que já não podia ser contida. Sorri de volta, me senti um pouco mais homem. Ainda era atraente. Isso mexe com o ego de um cara.

Ela ficou sentada depois que todos saíram. Eu a olhei arrumando imaginariamente a bolsa em um gesto tão antigo quanto molhar os lábios ou ajeitar os cabelos. Era a minha deixa e com a cara de pau típica destes momentos me aproximei.

Falamos sobre a manhã, as belas palavras, a evolução de todos e é claro, das coisas em comum, principalmente a fé.

Almoçamos juntos, andamos pelo parque, eu já calejado naquela rotina idiota da conquista, segui o script. Ela era tão experiente quanto eu. Estava nos gestos, na cara, nas palavras meticulosamente escolhidas para não me causar uma reação indesejável. Mas... Havia algo mais interessante que o teatro que ambos fazíamos? Duvido.

Talvez ela gostasse de se ver momentaneamente como uma mulher virtuosa conforme diziam os livros que ambos havíamos decorado. Talvez ela quisesse me ver um cavalheiro. Talvez eu quisesse esquecer que a tarde acabaria em uma cama de uma espelunca qualquer e que depois, pegajoso e vazio, eu a olharia com repulsa por mim mesmo.

Continuamos a novela romântica até o começo da noite. Ela tinha que ir, coisas com o filho. Compreendi com um sorriso de decepção genuíno. Um dia desperdiçado.

Ela foi embora, eu procurei um bar e pedi uma cerveja. Meia hora depois meu celular tocou. Mais meia hora, entrada do shopping, carro cinza. Eu engoli o último copo, paguei a conta e sorri satisfeito. Ainda era o cara, ainda estava em forma.

Assim que cheguei, fiquei surpreso. Conhecia aquele carro, lembrei de uma festa há uns quatro anos. Sabia agora quem ela era.

O filho tinha sido meu aluno, o marido, o cara que fazia sermões todos os domingos para mim. Aquilo passou de surreal a perigoso, mas não hesitei quando ela estacionou o carro e veio vestida com a estampa de onça para mim.

Depois daquela noite tivemos muitas outras. Soube das contas no exterior, do dinheiro desviado, das farsas, das festas, das bebidas e das drogas abençoadas. Soube ainda, que os tais encontros de casais que um dia me enojaram eram práticas comuns entre aqueles que comungavam a mesma crença.

E foi assim que eu percebi que havia algo muito errado. Que alguma parte do acordo entre eu e Deus havia sido quebrado.

Não por ser quem sou. Não por saber que se uma parcela, ainda que mínima, de tudo que ouvi em todos os domingos da minha vida, for verdade minha condição eterna não será das melhores. Nem tampouco, por questionar Deus e sua permissão para que tanta coisa fosse feita em seu nome e em sua casa.

Se coloco todos no mesmo balaio? Claro que não. Há pessoas lá tão ingênuas quanto eu fui e sim, acreditam que estão no reto caminho.

A quebra do acordo foi por causa da culpa.

A culpa que senti durante tantos anos, as questões que me fiz durante tantas madrugadas, o arrependimento que busquei sob tantas formas. Os dias e noites que passei me sentido um canalha, tentando ser como todas aquelas pessoas tão corretas, tão castas, tão fiéis e tão devotadas. A culpa por me sentir indigno, me sentir impuro e profundamente fracassado por que simplesmente não conseguia.

Mas o pior de tudo foi saber que tentei tanto e deixei de fazer tanta coisa para tentar me enquadrar naquele grupo santo e seleto que já aproveitava a vida bem antes de mim.

Houve injustiça. Isso é fato.

Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 22/02/2016
Reeditado em 08/05/2021
Código do texto: T5551359
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