VIDAS CRUZADAS - PARTE II
PARTE II
Depois desse episódio houve conspirações, ideias de fuga, Francisco soube do motivo pelo qual foi brutalmente castigado e calou-se.
__ Ó Ernesto, me arruma algumas sacas de fubá e um pouco de feijão, que é pra aquela negrada que come feito bicho.
__ Pois não patrão, mando hoje ainda, antes do sol se por. Anselmo falou, é uma ordem.
__ Pois que seja Ernesto. A ração daqueles escravos já estão no fim. Não se esqueça de colocar também um pouco daquela carne seca que sempre vosmecê coloca. Mas – disse dedo em riste – não exagere, que não quero gastar muito com essa gente.
Ernesto era comerciante, tinha dois escravos que nunca maltratara. Era um homem bom, desses raros nesses tempos. Sempre colocava o dobro ou mais de carne por sua conta. Francisco mesmo já buscara essas sacas de alimento e sempre recebia porção a mais com o sorriso do vendedor que recebia um Deus abençoe o sinhô que para o homem era a maior paga. Secretamente, era membro de um grupo da cidade que fazia reuniões, estudava leis e era abolicionista. Claro, que por razões comerciais obvias mantinha-se em segredo.
Contam que na fuga que houver e que formara o famoso quilombo do Ambrósio tinha sua participação. Não sei.
Felipe tinha uma irmã que se casou e foi morar na cidade. Em alguns feriados e nos aniversários ela costumava visitar a fazenda e trazia presentes para todos. Manoel não tinha irmãos. Seu pai faleceu dois dias depois do episódio do tronco, coisa de uns cinco meses já. Dizem que ele quase nunca conversava com as pessoas. O filho, evidentemente não se recordava de nada, tinha uma leve lembrança dele quando este o levava ao riacho. Das histórias de reis africanos e as lendas do Brasil ele não se lembrava de nada.
Passaram-se dezoito anos, Felipe estava para ir estudar, pretendia ser doutor advogado. Manoel era um homem robusto, forte, corpo rígido de tanto trabalhar na lavoura, mesmo destino de seu pai. Era o orgulho de sua mãe e era apaixonado por Rosa, escrava, jovem formosa, de sorriso encantador, no auge dos seus quinze anos, cobiçada por todos os homens daquela fazenda, inclusive, segundo se conta, de Anselmo, já envelhecido. É neste contexto que o velho fazendeiro, que tinha somente um filho, veio a falecer em circunstâncias até hoje desconhecidas. Conta-se que ele caiu já morto enquanto caminhava e tomava um pouco de sol. Houve suspeitas de envenenamento, pois, depois de uma hora apresentava manchas escurecidas na língua. Todo mundo falou, mas ficou no buchicho.
__ Sá, ô sá!
Era Albertina, já quase sem caminhar, toda encurvada, cochichando com Isabel.
__ Sinhô morreu de morte morrida não. Ele foi envenenado, eu sei.
Isabel ficou atônita, pois não acreditava, lá no fundo, que Anselmo havia morrido naturalmente.
__ Mas como Tina? Quem lhe contou? Como foi?
Com um sorriso irônico, a velha escrava revelou-lhe, baixinho:
__ Não se assuste Isabel, mas eu mesma fiz o veneno. Aquele maldito não podia ficar impune. Foi na água, seu filho que deu.
Isabel colocou a mão no peito, gritou pela Virgem Maria e foi silenciada pela amiga.
__ Fica calada menina! Ninguém sabe, ninguém viu – e mostrando-lhe as partes íntimas mostrou a ela uma marca de queimadura em ferro – isso não ia ficar assim. E além do mais, seu filho sempre quis dar fim a esse monstro. Ele sabe que a morte de seu companheiro recai sobre ele.
__ Minha nossa! Por que ele nunca falou nada? Meu Deus!!!
Acalmando-se, Isabel ficou sabendo de tudo. Manoel era escravo de confiança, menino bem educado, obediente, contava com a confiança de Anselmo, que sempre o acompanhava quando ia à cidade. Mas não era um dedo duro, sempre defendia os irmãos de senzala e ainda conseguiu, segundo dizem, abrandar o coração do fazendeiro. Mas no dia que soube das circunstâncias que levaram à morte de seu pai, quis avançar imediatamente sobre o culpado, mas foi contido por Albertina. Ela violou a expressa proibição que Isabel deu a todos de nunca contarem do tronco para o garoto. Tina deu o veneno, ele colocou no jarro de água que ficava na varanda e do qual somente o patriarca tomava, após sua caminhada matinal. Naquele dia Felipe estava na cidade. Tratava-se de uma erva que a velha escrava conhecia. Mas nada disso muda a história. Ninguém nunca desconfiou.
A morte de Anselmo mudou os planos de Felipe. Agora ele administrava a fazenda e dispensava cuidados à mãe, que idosa, ficara debilitada e perdera os movimentos da perna. Embora fosse mais tranquilo no trato com os escravos, o moço comandava o trabalho com mãos de ferro. Gonzáles havia sido mandado embora diante da morte de vários que ele castigava impiedosamente. Ora, escravo morto é prejuízo.
Felipe tinha os cabelos negros como a mais densa noite e os olhos castanhos davam um contraste que provocavam suspiros nas moças da cidade. Além de tudo, era herdeiro de uma imensa riqueza. Felipe, no entanto parecia não ter olhos para nenhuma delas. Vez ou outra flertava com uma ou recebia alguma proposta de algum amigo do pai para que acolhesse a filha em casamento. Entretanto, seus olhos só conseguiam enxergar a beleza de Rosa, sua escrava, que agora fazia trabalhos domésticos e era a responsável por cuidar de Luzia, a debilitada matriarca que dava as ordens que o filho seguia. Felipe assediava com discrição a moça, pois casar-se com uma escrava era um escândalo na tradicional família mineira. Claro que a linda moça percebia, mas fazia-se de desentendida, pois amava Manoel, a quem admirava pela altivez, pela solidariedade que prestava a todos os companheiros. Além do mais, possuía boas relações com o patrão. Manoel soube separar, embora tivesse nutrido um ódio por todos nos primeiros momentos em que soube da morte do pai.