Cinderelo
A tarde, de sol escaldante, me torturava.
Cada momento passado naquele carro me deixava cega de raiva.
Não queria estar ali. Não escolhi o local, não decidi e entre todas as possibilidades, aquele seria o último lugar em que eu pensaria.
Meu estômago reclamava de fome, minha cabeça anunciava que logo mais romperia em dor e para piorar tudo, meus pés estavam inchados com aquele calor infernal e agora o salto me incomodava tanto quanto a blusa colada pelo suor.
Ele, totalmente alheio às minhas emoções, saiu todo sorridente da espelunca dizendo que em breve uma mesa vagaria. Poderíamos esperar no carro mesmo que logo alguém viria nos avisar.
Avaliei o lugar tentando esconder meu desânimo. Paredes verdes, pedras cinza cobrindo o pátio lotado de mesas de marca de cerveja e de gente escancarando a boca em selfies tão batidas quanto a música da moda.
Eu queria correr, sumir dali, mas ao invés de levantar e sair andando rumo à liberdade e uma noite tranquila, sorri de volta e disse que estava tudo bem.
Ele abriu a porta do carro e sentou ao meu lado. Senti o perfume amadeirado eleito por outro meio milhão de usuários e constatei que não era bom.
Camisa rosa bebê, jeans claros e sapatos estranhos. Tentei ignorar meus pensamentos sobre sapatos. Deixar de lado a minha convicção absurda de que se conhece um homem por aquilo que ele coloca no pé, mas no caso dele não tinha jeito.
Eram de tecido. Os tais sapatos. Se é que aquilo poderia ser definido assim. Um tecido grosso de cor marrom e costuras verdes. Uma coisa medonha que saía das extremidades da perna e ficavam tocando o chão do carro no ritmo horroroso da música que vinha do bar.
Ele voltou a sorrir e reparei nos dentes. Amarelados, carentes de ortodontia, quem sabe de escovação... Desviei meu olhar. Tentei prestar atenção na letra da música, mas após alguns segundos ouvindo a letra que dizia que alguém que se casaria com outro amando um terceiro, senti minha dor de cabeça chegando mais rápido.
O calor piorava contrariando o fim do dia. Eu suava de impaciência, de fome, de raiva e de frustração. Uma brisa morna trouxe de volta o perfume e tive uma onda de náusea.
Olhei o bar com suas paredes de um verde duvidoso e uma espécie de pânico começou a tomar conta de mim. Ele procurou pela minha mão, mas tudo o que consegui ver foram os pelos que cresciam em suas orelhas.
Repulsa! Ele começou a falar do trabalho e coloquei um sorriso plástico no rosto enquanto balançava a cabeça parecendo concordar. Ouvi a voz monótona, inspirei o ar carregado do carro e olhei novamente os sapatos... ah, aqueles sapatos. Eles poderiam me dizer tanto e uma vez que me dissessem, eu teria que deixar de ignorar as outras evidências e sair correndo dali.
Ri dos meus pensamentos... o que poderiam sapatos dizer? Mas aqueles diziam... Um cara limitado. Um tipo que se contenta com rotina, um homem sem imaginação, quem sabe até fraco, cuja masculinidade ficaria restrita aos palavrões dos jogos de futebol de domingo. Um tipo esquisito que não observa as próprias orelhas e cá entre nós... Se o que está visível para o mundo não é bem cuidado, imaginemos o que fica oculto sob camadas de tecido...
Fiquei nauseada com a ideia.
Ele continuava falando animadamente. Minha ira crescia na mesma medida. Queria comer alguma coisa, uma bebida gelada, um lugar refrescante e com um pouco mais de classe, mas não disse nada.
Estar naquele bar não tinha sido escolha minha, mas conhece-lo sim. Um encontro após o trabalho, happy hour descontraída, conversa jogada fora... Assim tinha sido o acordo na troca de mensagens no site de relacionamentos. Na foto até que ele era bonitinho, mas pessoalmente...
Reparei que havia mentido na altura, no peso e na condição financeira. Tudo aquilo não era relevante se o papo fosse bom, a inteligência palpável e bem... os sapatos tivessem um pouco mais de personalidade.
A música agora era um tipo de batida que falava em vassoura. Congelei. O que eu estava fazendo ali? E o pior: por que não ia embora?
Simples! Eu havia decidido me torturar até o limite. Queria impor a mim mesma um sofrimento que fosse tão marcante a ponto de eu não encarar mais uma roubada daquelas. Uma espécie de masoquismo ou de trauma para ficar registrado quando eu tivesse ímpeto de aceitar encontros terríveis como aquele.
Alisei minha saia em preto e branco, ajeitei meus pés no sapato altíssimo e limpei o suor que descia pelo pescoço.
Ele pediu um beijo e eu entrei em pânico. Não beijaria. Preferia a morte. Jamais colocaria a minha boca na dele.
Fiquei imaginando uma desculpa enquanto ele se movia na minha direção com os olhos parcialmente fechados lembrando um sapo morto ou em vias de perder a vida.
Senti um arrepio percorrendo meu corpo que agora suava mais um pouco com a descarga de adrenalina.
Não estava certo. Nada fazia sentido.
Uma mesa grande foi desocupada por um grupo de homens vestidos com camisas de time de futebol. Ele desistiu do beijo quando, eu, animada, apontei que poderíamos enfim, sair do carro.
Não estranhei quando ele penteou o cabelo e nem quando fez um som estranho com os dentes. Também não quis imaginar o que ele pretendia tirar do meio deles e nem a quanto tempo estava grudado ali.
Um homem com aqueles sapatos, era capaz de tudo!
Arrepiei.
Por fim, me vi do lado de fora. Ar carregado, cigarro, cerveja velha e música ruim brigavam com minhas roupas e meus modos.
Dei dois passos vacilantes sobre meus saltos, mas parei assim que senti a mão dele na minha. Pegajosa.
Olhei os sapatos dele mais uma vez. Eles pareciam rir de mim. Abriam a bocarra a cada passo que ele dava. Vi escárnio e uma espécie de satisfação naqueles apêndices feitos de borracha, linha e tecido grosseiro.
Ele me puxava para dentro do boteco. A bocarra sorria e mostrava os dentes, a língua de tecido marrom e os fios soltos feito tentáculos. ... Cadarços desamarrados... Um degrau, dois... A tira sendo presa em um dos pés... O tombo e a redenção! A minha!
O socorro demorou a chegar e enquanto esperava, pensei em tomar uma cerveja, mas desisti.
A música continuava alta e agora falava de uma paixão que sangrava e pude ouvir algumas piadas falando dele que, com o tombo, ganhara um corte medonho do lado esquerdo do rosto.
Quando por fim ele foi levado para o hospital, chamei um táxi e pedi que rodasse por alguns minutos antes que eu decidisse onde queria ir.
Um bairro arborizado, restaurantes tranquilos e um bar pequeno me acenaram quinze minutos depois. Lá, meus sapatos eram bem-vindos e combinavam com os outros que andavam por ali.
O blues invadiu o ambiente e fiquei nostálgica. Queria mesmo me apaixonar.
Ponderei uma taça de vinho, mas me senti um pouco estranha.
Notei pequenas manchas de sangue nos meus sapatos. Saí de cabeça baixa pensando em como tirar aquelas gotas marrons dos meus saltos preferidos.
O esbarrão veio com força e bati minha boca no queixo dele. Senti o gosto de sangue.
Ele pediu desculpas.
Não prestei atenção.
Lá debaixo, um par de sapatos fortes e elegantes acenava para mim.